RIO – As companhias aéreas têm convivido com ventos favoráveis este ano, com a queda dos preços do querosene de aviação (QAV) no Brasil. O combustível, responsável por cerca de 40% dos custos das empresas do setor, voltou a se aproximar dos patamares pré-guerra da Ucrânia, ao mesmo tempo em que a demanda por voos domésticos retorna aos patamares pré-pandemia.
Depois de um 2022 de forte pressão sobre os custos das companhias áreas, em função dos picos do petróleo no mercado internacional, o preço do QAV da Petrobras, responsável por suprir mais de 90% do mercado doméstico, acumula uma redução de 31,7% em 2023, até agosto, nos pontos de entrega às distribuidoras.
Já foi maior. Até junho, após sucessivos cortes, o QAV da Petrobras chegou a acumular uma queda de 35% no ano. A tabela é reajustada mensalmente e, em julho, a companhia começou a repassar o aumento nos preços internacionais. Analistas apontam que os preços do mercado doméstico estão alinhados ao mercado externo.
Junto com a queda dos preços do QAV, o valor das passagens também está caindo este ano, mas em ritmo menor.
De acordo com dados da Associação Nacional de Aviação Civil (Anac), no acumulado do ano, até maio, a tarifa média real das três principais companhias aéreas do país (Azul, Gol e Latam) era de R$ 572,7, uma retração de 8,5% na comparação com igual período do ano passado – quando o início da invasão da Ucrânia pela Rússia desencadeou uma inflação no combustível.
O governo federal tenta ampliar o acesso aos voos, uma marca de gestões passadas do PT. O ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França (PSB), já defendeu publicamente uma nova política de preços para o QAV.
As companhias aéreas, no entanto, têm adotado um discurso de cautela sobre o repasse da desvalorização do QAV para as tarifas aéreas.
O que você vai ver nesta reportagem:
- Empresas aéreas justificam repasse
- Governo cobra redução das passagens
- Preços do QAV voltam aos níveis pré-guerra
- Como o preço do combustível afeta as passagens?
- É possível reduzir os preços do QAV no Brasil?
- Momento é favorável para novos investimentos
- Mudanças regulatórias aumentam competição
- Acesso à infraestrutura existente gera debate
O que dizem as empresas aéreas
O presidente da Gol Linhas Aéreas, Celso Ferrer, considera que, apesar da queda mais recente dos preços do QAV, o combustível ainda está sujeito a volatilidades.
Ele acredita que, diante deste cenário, as companhias devem assumir uma “postura de mais cautela” em seus planos. O executivo explica que os voos são vendidos muitas vezes com 11 meses de antecedência e que as empresas precisam calibrar com cuidado os custos com o derivado.
Ferrer cita que o QAV brasileiro continua sendo “um dos combustíveis mais caros do mundo” e 49% mais alto do que o combustível que a Gol tem acesso, por exemplo, nos EUA.
“Estamos tentando manter um modelo de precificação, onde continuamos com tarifas bem baixas […], mas, ainda assim, com muita cautela nisso quando vai no gerenciamento voo a voo”, disse no fim de julho, durante teleconferência com analistas.
“Temos expandido tarifas promocionais, e isso tem até sido refletido nos índices de inflação recentemente, mas fazemos isso com cautela, porque essa montanha russa mais o delay [atraso], tanto do combustível quanto do câmbio, precisa olhar para eles de uma maneira que eles podem ir e voltar muito rápido. O setor ainda é muito exposto a isso.”
Ao comentar sobre o aumento do preço da Petrobras, este mês, o CEO da Latam Brasil, Jerome Cadier, afirmou que o setor convive há bastante tempo com uma grande volatilidade e que, portanto, as empresas devem continuar sendo conservadoras.
O vice-presidente de Finanças na Azul Linhas Aéreas, Alex Malfitani, por sua vez, destacou que a queda do preço do combustível tem permitido à empresa adicionar mais voos aos finais de semana e mais voos noturnos, retomando as utilizações pré-pandêmicas.
“Mas temos que ter um pouco de cuidado porque o combustível ainda é mais alto em comparação com os níveis pré-pandêmicos, afirmou o executivo, na semana passada, em conversa com analistas e investidores.
Governo cobra redução das passagens
Baratear as passagens aéreas é uma meta do governo Lula. O ministro dos Portos e Aeroportos, Márcio França (PSB), prometeu criar o Voa Brasil, programa para vender passagens aéreas a R$ 200, com foco inicial em aposentados, pensionistas e estudantes, além de pessoas com renda de até R$ 6,8 mil.
A ideia é aproveitar os períodos de baixa temporada e ociosidade, como os meses entre março e maio e entre agosto e novembro.
O governo cobra das companhias aéreas passagens mais baratas. No mês passado, em reunião com a Associação Brasileira de Empresas Aéreas (Abear), o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), cobrou estudos técnicos para viabilizar a redução das passagens.
“Claro que sabemos que existem outros fatores que impactam [os preços da passagem, além do QAV], por isso precisamos fazer um esforço para que seja apresentada uma proposta do setor bastante objetiva”, disse o ministro na ocasião.
Segundo Silveira, é preciso clareza do setor, “para que façamos um esforço para a redução dos valores das passagens e aumento da quantidade de pessoas que possam voar”.
O presidente Lula reforçou a cobrança: “vamos chamar as empresas de aviação para conversar sobre o porquê não temos aviões regionais e [sobre] o preço alto das passagens”, escreveu nas suas redes sociais, no início do mês.
Procurada, a Abear optou por não se posicionar para esta reportagem.
Preços do QAV voltam aos níveis pré-guerra
A queda nos preços do combustível de aviação começou a acelerar, sobretudo, após fevereiro – refletindo a melhora nos preços do barril de petróleo no mercado internacional.
Em julho, o preço médio dos produtores e importadores era de R$ 3,45 por litro, uma alta de 2,7% em relação a junho, mas próximo dos valores nominais (sem correção inflacionária) cobrados em janeiro de 2022 – mês anterior à eclosão da guerra da Ucrânia, segundo dados da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
Veja, abaixo, a curva dos preços do QAV desde janeiro de 2019 (sem correção inflacionária)
Como o QAV afeta as passagens?
O combustível é um componente importante dos preços das passagens, mas as tarifas sofrem impactos também de questões como oferta e demanda. Um dos desafios nos últimos anos foi, por exemplo, o balanço entre a previsão de demanda de passageiros e o estoque de QAV.
Especialistas apontam que um dos principais motivos para a percepção de descolamento, hoje, entre os preços dos combustíveis aéreos e das passagens é o câmbio.
“A referência [dos combustíveis] com base internacional acaba encarecendo os preços aqui”, diz o pesquisador do Grupo de Energia e Regulação da Universidade Federal Fluminense (Gener/UFF), Francisco Raeder.
Do volume total de QAV consumido no Brasil, a maior parte é produzida nas refinarias nacionais. Outros 25% são importados, sobretudo, pela Petrobras, pois a companhia tem infraestrutura para garantir o atendimento às especificações necessárias para a comercialização do produto importado.
Nos últimos anos, a participação de volumes importados no mercado brasileiro tem crescido, dado o aumento da demanda e a estagnação da capacidade de refino. A maior parte do volume importado atende aos mercados do Sudeste, onde estão localizados os dois principais aeroportos do país, Guarulhos/Cumbica (SP) e Galeão (RJ).
Os preços para o combustível de aviação da estatal têm reajuste mensal e são definidos com base em fórmulas contratuais negociadas com as distribuidoras. O QAV não foi incluído na reformulação da política de preços de combustíveis da Petrobras anunciada em maio deste ano, que ficou restrita ao diesel e à gasolina.
“Nossos preços buscam o equilíbrio com os mercados nacional e internacional e, ao mesmo tempo, mitigam a volatilidade diária das cotações de referência”, afirma a estatal em nota.
A Petrobras foi responsável por 93% das entregas de QAV no Brasil nos cinco primeiros meses do ano, segundo a ANP, enquanto o restante foi entregue pela Acelen (BA) e Ream (AM), privatizadas no programa de desinvestimentos d programa de desinvestimentos a estatal.
Recentemente, um novo player entrou nesse segmento: a 3R Petroleum, que assumiu a operação da Refinaria Clara Camarão (RN), em junho, e também vai entregar combustível de aviação ao mercado regional.
Por ser um combustível que tem regras específicas de segurança e qualidade, há pouca flexibilidade para intercâmbio do QAV entre as diferentes regiões do país, por isso, cada refinaria atende principalmente a região onde está localizada.
É possível reduzir os preços do QAV no Brasil?
As discussões sobre a redução dos preços passam, primeiro, pela questão de como fazer os combustíveis chegarem de maneira mais eficiente aos aeroportos e novos investimentos em infraestrutura.
A falta de interligação por meio de dutos para os aeroportos faz com que os custos para a movimentação dos produtos no Brasil sejam maiores do que nos Estados Unidos, por exemplo, onde praticamente todos os aeroportos são conectados.
“Essa acessibilidade de menor custo logístico para fazer o QAV chegar aos aeroportos no Brasil é uma discussão necessária, implica em um maior custo interno”, diz o diretor de mercados de petróleo da S&P Global Commodity Insights, Felipe Perez.
No mercado, há quem defenda que uma das chaves para a redução dos preços do QAV no país é a diversificação de atores na cadeia de distribuição. Hoje, três grupos concentram essa atividade: Raízen, Vibra e Air bp.
Críticos dizem que as maiores distribuidoras praticam altas margens, o que encareceria os combustíveis de aviação no país. Especialistas, no entanto, afirmam que os preços nacionais estão em linha com o mercado internacional, principalmente considerando o mercado americano, que concentra o maior parque de refino do mundo.
Para o Instituto Brasileiro do Petróleo e do Gás (IBP), não é cabível comparar os preços do mercado externo e o nacional. “As estruturas de preços dos países são distintas e não temos dados abertos suficientes”, disse o instituto em nota.
O IBP defende que uma eventual redução nos preços do QAV no Brasil virá de uma maior competição no refino, com o aumento da concorrência interna.
Há interesse de novos entrantes, principalmente no elo da distribuição. Em 2022, a Gran Petro conseguiu acesso ao terminal de Guarulhos e, com isso, passou a competir no suprimento.
A Sol Aviation, do grupo Rede Sol, também conseguiu acesso ao aeroporto recentemente e planeja atender inicialmente à aviação privada. A companhia tem intenção de expandir a atuação para outros aeroportos nas demais regiões do país.
Momento é favorável para novos investimentos
Um dos motivos que tem atraído o interesse de novos players pelo mercado de QAV no país é o crescimento da demanda por voos no Centro-Oeste e Norte do país, devido sobretudo à demanda do agronegócio.
A Air bp, uma das três maiores distribuidoras de QAV no Brasil, diz ver “enorme potencial de crescimento” no mercado de aviação brasileiro e elegeu o país como um dos focos para investimentos no mundo nos próximos anos.
A companhia espera concluir até o fim do ano a construção de um novo ponto de suprimento em Paulínia, de olho na crescente demanda do centro-oeste. Está nos planos um projeto de abastecimento no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, para atender voos gerais e comerciais, com previsão de início das operações para 2024.
Perez, da S&P, aponta que o momento é favorável para discutir a atração de novos investimentos para a infraestrutura de QAV no país, dado que esse é um dos combustíveis líquidos que terá demanda crescente no longo prazo, mesmo com a transição energética.
“A população cresce, a demanda por voos cresce, o Brasil precisa criar eficiência para a chegada dos combustíveis aos aeroportos”, diz.
Ele acrescenta ainda que o Brasil pode aproveitar para discutir a ampliação da infraestrutura de abastecimento considerando a entrada de novos produtos, como o combustível sustentável de aviação (SAF).
“O Brasil perde atratividade se não oferecer o SAF com estabilidade. Isso vai ser um ponto muito importante para a competitividade dos aeroportos brasileiros no ambiente internacional”, afirma.
Mudanças regulatórias aumentam competição
Há alterações regulatórias em curso para fomentar a competição nesse segmento. A ANP é responsável pela infraestrutura associada aos combustíveis de aviação até a chegada ao aeroporto, enquanto a Anac regula as movimentações dentro dos aeroportos.
Uma resolução da Anac publicada este ano (717/2023) demanda que as operadoras dos aeroportos enviem até o fim de agosto uma proposta de Termo de Condições de Acesso às infraestruturas de abastecimento em Guarulhos (SP) e no Galeão (RJ). Os critérios de acesso serão discutidos com os potenciais interessados.
Em novembro de 2022, o tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) condenou as três companhias e a GRU Airport por restrições no acesso, com multas que somam R$ 150 milhões.
No ano passado, a ANP publicou uma resolução com os critérios para o acesso não discriminatórios a terminais aquaviários e dutos. Ainda está na pauta da agência uma discussão sobre os papéis de distribuidores e revendedores de combustíveis de aviação.
Acesso à infraestrutura existente gera debate
Uma das questões que gera entraves no mercado é o acesso à infraestrutura existente. Os players com histórico de atuação nesse segmento afirmam que devem receber contrapartidas pelo acesso à infraestrutura.
“Quem investiu tem que ter o direito de prioridade ou ser reparado pelo investimento que fez”, diz uma fonte com amplo conhecimento do segmento.
A Petrobras afirma que está disposta a atender qualquer distribuidora que atenda aos requisitos legais e regulatórios. Nos últimos anos, inclusive, a estatal passou a disponibilizar combustíveis de aviação em Guarulhos por terminais rodoviários, fora do aeroporto, o que facilita o acesso a outras distribuidoras.
O vice-presidente de comercial B2B da Vibra, Bernardo Kos Winik, defende que é necessário que os novos agentes do mercado de distribuição entrem com uma participação financeira para ter acesso à infraestrutura, dado que o pool de empresas em Guarulhos fez investimentos na construção e manutenção desses equipamentos.
“A Vibra não se opõe à entrada de novos entrantes, desde que estes atuem de acordo com os devidos padrões operacionais, com comprovação de know-how, certificações atualizadas e demais sistemas de qualidade e conduta necessários à segurança deste mercado tão específico e crítico”, diz.
Já a Air bp afirma que está trabalhando com os reguladores na revisão dos padrões de acesso à infraestrutura e o abastecimento de combustível de aeronaves nos aeroportos.
“A empresa preza e incentiva a livre concorrência e o melhor atendimento no serviço aéreo brasileiro e acredita que o processo de seleção de fornecedores deve ser feito com critérios rigorosos para garantir os padrões de segurança e qualidade que o mercado exige”, afirmou a Air bp em nota.
Correção: ao contrário do informado anteriormente, o novo ponto de suprimento da Air bp em Paulínia ainda não está operacional. Deve ficar pronto até o fim do ano.