Biocombustíveis

RenovaBio: aprimorar para ganhar o mundo

Equilibrar oferta e demanda de CBIOs é, hoje, essencial para que o RenovaBio eleve o Brasil a um dos maiores mercados de créditos de carbono do mundo, avaliam Aurélio Amaral e Marcos Cintra

RenovaBio: aprimorar para ganhar o mundo. Na imagem: Usina de etanol São José da Estiva, no município de Novo Horizonte, em São Paulo (Foto: Divulgação/W7 Energia)
Usina de etanol São José da Estiva, no município de Novo Horizonte, em São Paulo (Foto: Divulgação/W7 Energia)

A sustentabilidade dos processos produtivos do setor energético brasileiro assegura ao país lugar de destaque no desenvolvimento de uma economia verde e encontra nos biocombustíveis um de seus exemplos mais afirmativos.

Com baixa pegada de carbono e elevado potencial de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE), o setor é um ativo potencialmente poderoso para que o Brasil ocupe espaço nos mercados de crédito de carbono.

Trata-se de um negócio global capaz de gerar recursos para impulsionar a substituição dos combustíveis fósseis através da expansão da produção e do uso de etanol, biodiesel, biometano e bioquerosene.

Os notáveis atributos do setor de biocombustíveis o tornam o principal meio para o Brasil cumprir o compromisso, estabelecido no Acordo de Paris, de reduzir em 37% as emissões de GEE até 2025.

A Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), instrumento que materializa a estratégia brasileira, foca no setor de transportes, um dos principais emissores, e tem como base três pilares: 1) Metas de Descarbonização; 2) Certificação da Produção de Biocombustíveis; e 3) Crédito de Descarbonização (CBIO).

No primeiro pilar, o governo estipula anualmente metas nacionais de descarbonização. As metas são cumpridas pelas distribuidoras de combustíveis, que nos moldes atuais são a parte obrigada da política, por meio da compra de CBIOs, de acordo com seu volume de vendas.

No segundo pilar, produtores de biocombustíveis certificam sua produção, que recebe notas de acordo com sua eficiência energético-ambiental.

No terceiro pilar, as notas atribuídas à produção são multiplicadas pelo volume de biocombustível comercializado, o que resulta na quantidade de CBIOs que os produtores poderão emitir e vender às distribuidoras.

RenovaBio dá destaque “verde” ao Brasil

Essa política pública criou, já na partida, um mercado bilionário que mobiliza as engrenagens da economia verde e contribui para o Brasil se sobressair no cenário de transição energética.

O programa, contudo, necessita de aprimoramentos que lhe tragam a estabilidade operacional que gradualmente cimenta a perenidade. À primeira vista, algumas regras parecem colaborar para a escassez de CBIOs, como aponta o Tribunal de Contas da União (TCU).

Em auditoria recente, a corte de contas ressalta que o RenovaBio apresenta grande potencial para estimular a produção e o consumo de biocombustíveis no país. O TCU conclui, contudo, que a política apresenta desafios e riscos, sendo o principal deles a potencial indisponibilidade de CBIOs.

Mas escassez e preços altos podem arriscar programa

A carência de créditos de descarbonização no mercado já é uma realidade que dificulta o cumprimento das metas e aparenta caminhar para se tornar uma situação crônica se nada for feito.

Se há pressão sobre a demanda por CBIOs, presentemente já escassos, ela tende a aumentar a partir desse ano, quando começa a elevação progressiva das metas obrigatórias das distribuidoras de combustíveis.

A necessidade de cumprimento do estoque de metas globais de CBIOs, adiadas de 2022 para setembro de 2023, adiciona tensão a esse quadro.

O mercado já expressa essa disfuncionalidade. O valor dos certificados saltou de R$ 30,00, em seu lançamento, para R$ 200,00, no pico, estabilizando na faixa de R$ 100,00 em decorrência do adiamento de metas.

Os preços altos, que seriam, à primeira vista, algo positivo para os produtores de biocombustíveis, são na verdade um risco potencial.

A escalada, que já dificulta o cumprimento das metas das distribuidoras, pode justificar novas postergações, ou até mesmo a concessão waivers. No limite, esses agentes podem buscar medidas judiciais sob o argumento de que o custo dos CBIOs gera desequilíbrio econômico ao onerar demasiadamente um segmento que opera com margens estreitas e fluxo de caixa enxuto.

Esse cenário, que gera fricção entre os elos da cadeia que compõem o RenovaBio, traz incerteza sobre a continuidade de uma iniciativa que amplia a rentabilidade dos biocombustíveis e estimula o crescimento de sua produção.

Equilíbrio urgente

Urge, por essa razão, reformar o mecanismo para que alcance um cenário de equilíbrio, onde quem quer comprar encontre aqueles que querem vender e cheguem a preços mutuamente aceitáveis.

Talvez um passo necessário nessa direção seja aprofundar o diagnóstico elaborado ano passado pelo ministério de Minas e Energia (MME), que reavaliou a política e propôs ajustes.

O deslocamento das metas de descarbonização para o segmento responsável pela origem das emissões, as refinarias, seria bem-vindo, pois reduziria os custos de transação e poderia contribuir para estabilizar as condições de oferta e demanda no mercado de CBIOs.

Adicionalmente, alinharia o RenovaBio a programas similares no mundo, que concentram as obrigações de cumprimento das metas no segmento responsável pela origem das emissões, as refinarias, a exemplo do Low Carbon Fuel Standard (LCFS ) da Califórnia, inspiração da política brasileira.

CBIO+

Entende-se também ser oportuna a criação de alternativas que ampliem a geração de CBIOs através da remuneração de atributos não capturados pela metodologia atual. Nesse sentido, um caminho possível seria potencializar a criação de créditos de descarbonização.

O CBIO+, ou CBIO Plus, consistiria em um incentivo adicional aos produtores de biocombustíveis que adotarem prática de manejo florestal sustentável em suas propriedades, incentivarem o aproveitamento do biogás e desenvolverem técnicas de captura de carbono em seus processos produtivos.

Alternativas tecnológicas que contribuam para a redução das emissões de GEE também poderiam ser utilizadas para gerar créditos de carbono em conjunto com a produção de biocombustíveis.

A fabricação de biometano a partir do biogás, utilizado como combustível renovável em veículos ou injetado na rede de distribuição de gás natural, é uma delas, assim como o aproveitamento do resíduo da digestão anaeróbia do biogás, conhecido como biofertilizante.

A produção de biocombustíveis avançados, como o etanol de segunda geração e o HVO/SAF, apresenta-se como outro caminho potencial.

O etanol de segunda geração, produzido a partir da celulose e da hemicelulose presentes na palha e no bagaço da cana-de-açúcar, tem inclusive maior potencial de redução de emissões de GEE em comparação com a produção atual.

Já o HVO/SAF, produzido a partir de óleos vegetais ou de gorduras animais, usado como combustível em veículos a diesel ou em aviões, respectivamente, também apresenta potencial expressivo.

Assim, a criação do CBIO+ valorizaria os atributos adicionais da produção de biocombustíveis e incentivaria a adoção de tecnologias ainda mais sustentáveis e avançadas.

Esse passo à frente ampliaria a contribuição dos biocombustíveis para a mitigação das mudanças climáticas e reforçaria o cumprimento das metas de descarbonização assumidas pelo Brasil em âmbito internacional.

Ao ampliar a fungibilidade do CBIO, a proposta pode, inclusive, torna-lo elegível a outros mercados de crédito de carbono, permitindo disputar uma demanda mundial.

Para tanto, o regulamento deverá trazer mecanismo para compatibilizar a Avaliação do Ciclo de Vida (ACV) do RenovaBio com as metodologias de certificação de carbono postas pelo Acordo de Paris, de modo a possibilitar sua comercialização como crédito offset.

  • Créditos de carbono referem-se a toneladas de CO2 evitadas ou removidas da atmosfera, sob uma lógica de compensação – daí o nome offset –, conforme o Art. 6º do referido Acordo.

Em tais circunstâncias, há espaço – e mesmo a necessidade – para aprimorar o RenovaBio e torná-lo o instrumento para que o país possa apropriar-se de todos os benefícios proporcionados pela sua produção de biocombustíveis, no contexto brasileiro e global.

A correta alocação das responsabilidades, e a incorporação à metodologia de atributos hoje não capturados, podem sanar as disfuncionalidades que desestabilizam o programa.

Equilibrar as condições de oferta e demanda de CBIOs é hoje, portanto, o passaporte para que o RenovaBio siga a sua vocação de tornar o Brasil um dos maiores mercados geradores de créditos de carbono do mundo.

Cobrimos por aqui:

Aurélio Amaral é sócio no Shmidt Valois advogados e ex-diretor da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

Marcos Cintra é executivo do setor de petróleo, gás e energia, com mais de 20 anos de experiência na área. Atualmente, é Head de Relações Institucionais da Eneva.

Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.