O processo HBIO desenvolvido em 2006 dentro do Cenpes-Petrobras é uma tecnologia de “coprocessamento”. No coprocessamento, parte-se de uma mistura contendo altos teores de diesel fóssil bruto (tipicamente 95%) e apenas 5% de óleo vegetal.
Nesse processamento, denominado nas refinarias de HDT (hidrotratamento) trabalha-se com hidrogênio em altas temperaturas e pressões, na presença de catalisador.
Tipicamente, os 5% de óleos vegetais são transformados em apenas 4% de parafinas nesta etapa. Chamar um produto que contém apenas 4% de origem renovável e 96% de origem fóssil como “diesel verde” ou mesmo de “diesel renovável” é uma mistificação que não contribui para o desenvolvimento de um ecossistema energético, nem para uma política séria de descarbonização.
Pelo contrário, caracteriza uma atitude oportunista de empurrar para a sociedade um retrocesso ao uso crescente de biocombustíveis.
O Brasil foi pioneiro no uso de biocombustíveis da década de 1970, com o Programa Pró-Álcool, e já é o segundo maior produtor de biodiesel do mundo.
Mais do que um biocombustível avançado, o biodiesel é um agente de redução de internações hospitalares e mortes prematuras por problemas respiratórios.
A cadeia de valor do biodiesel é responsável por milhares de agricultores familiares fornecedores de matéria-prima para as indústrias do setor, representando, assim, um dos maiores programas de inclusão social do Brasil.
A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) possui um comitê dedicado à discussão do Diesel Verde (em consulta pública) e qualquer tipo de coprocessamento de matérias-primas renováveis com combustíveis fósseis é, acertadamente, desconsiderada.
A Ubrabio vê com muita preocupação essa atitude da Petrobras.
Os biocombustíveis representam um patrimônio para o país. O uso indevido da designação “verde” ou “renovável” é desconstrutivo para o debate sobre descarbonização dos combustíveis e ameaça não só a credibilidade do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB), já consolidado como uma política de Estado, e do RenovaBio, como também traz prejuízos a essa nova indústria que tenta nascer no Brasil: do HVO (o verdadeiro diesel verde, cuja principal matéria-prima é a biomassa) e do bioquerosene.
A própria Petrobras, em 2006, quando lançou pela primeira vez esse projeto de produção de diesel coprocessado com óleo vegetal, batizado de HBIO, o definia como “processo tecnológico desenvolvido pela Petrobras para produção de diesel nas refinarias convencionais, utilizando a mistura de petróleo com óleos vegetais”.
Reparem que, em nenhum momento, as palavras “verde”, “renovável”, ou mesmo, “biocombustível” aparecem.
Isso porque não podemos chamar de verde um combustível cuja redução de emissões é irrelevante perto da proporcionada pelo biodiesel.
No coprocessamento do diesel de petróleo com 5% de óleo de soja, a redução de emissões de gases de efeito estufa é de 2,8% em relação ao diesel fóssil puro. Em comparação, o biodiesel de soja reduz 70%.
Além da questão da sustentabilidade ambiental, outros questionamentos devem ser feitos à Petrobras e sua tentativa de mudar o conceito de “biodiesel” ou “diesel verde” para incluir o seu produto.
Por exemplo, como fica a inclusão da agricultura familiar?
O PNPB é hoje o maior programa de transferência de renda para a agricultura familiar no Brasil, por meio do Selo Combustível Social. Não existe no mundo uma política paralela de inclusão produtiva nestes moldes – 99% do volume de biodiesel que é comercializado nos leilões públicos é proveniente de produtores que adquirem parte da matéria-prima de agricultores familiares.
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Dando nome aos “bios”
O biodiesel é definido na Lei 11.097/2005 como um “biocombustível derivado de biomassa renovável para uso em motores a combustão interna (…) ou (…) para geração de outro tipo de energia, que possa substituir parcial ou totalmente combustíveis de origem fóssil”.
E regulamentado pela Resolução ANP n° 45/2014 como “combustível composto de alquil ésteres de ácidos carboxílicos de cadeia longa”.
Os principais polos produtores de biodiesel, tais como os EUA, Europa, Indonésia e Canadá conceituam biodiesel como FAME – Fatty Acid Methyl Esters.
Já o conceito “biodiesel base hidrocarboneto parafínico”, como proposto pela Petrobras na consulta pública sobre diesel verde, não encontra respaldo técnico na literatura nem nas normas legais.
Assim como não pode ser enquadrado como biodiesel, o produto da petrolífera também não encontra lugar na especificação proposta pela minuta da ANP, que define o diesel verde como combustível a ser produzido a partir das seguintes rotas:
“I – hidrotratamento de óleo vegetal e animal; II – gás de síntese proveniente de biomassa; III – fermentação do caldo de cana-de-açúcar; e IV – oligomerização de álcool etílico (etanol) ou isobutílico (isobutanol)”.
O produto da Petrobras foi patenteado em 2005 como “processo para a hidroconversão de óleos vegetais campo da invenção” e depois, em 2009, como “processo para a hidrotratamento de óleo de biomassa diluído em corrente de refino de petróleo”, logo, cientificamente, não corresponde ao verdadeiro conceito de diesel verde, por ser produzido predominantemente a partir de petróleo.
O que a Petrobras tenta fazer é reduzir o espaço de consulta pública proposto pela ANP, diante de uma demanda legítima de introdução de novos biocombustíveis na nossa matriz energética, a uma discussão sobre sua patente, em um movimento que vai aumentar a concentração de mercado pelo agente dominante – no caso, ela mesma.
Esse movimento vai na contramão do que o Brasil precisa. Diferente do que vem sendo alegado por agentes do governo, o avanço da Petrobras – que já detém cerca de 80% do mercado de diesel no Brasil – sobre o mandato de biodiesel, ao invés de “aumentar a concorrência” vai aumentar o monopólio da estatal sobre o mercado de combustíveis, em conflito com a política liberal defendida pelo governo brasileiro.
Por fim, cabe ressaltar que a Ubrabio é favorável ao desenvolvimento da indústria do verdadeiro diesel verde no Brasil, no conceito de biorrefinarias, onde no mesmo processo é produzido também o bioquerosene de aviação e outros produtos da química verde que vão contribuir imensamente para a descarbonização da nossa economia, aproveitando nosso potencial produtivo e diversidade de oferta de matérias-primas renováveis.
Entretanto, esse tema precisa passar pela discussão da sociedade de forma mais ampla, como foi a introdução dos outros biocombustíveis na matriz, por meio da aprovação de um marco legal que envolveu sociedade, Poder Executivo e Legislativo no debate.
Até hoje, todo avanço no percentual de mistura de biodiesel, por exemplo, precisou passar pelo Congresso Nacional.
A minuta de resolução tal como proposta pela ANP é um primeiro passo neste sentido, pois reconhece a diferença entre os combustíveis, mas não pode ser subvertida para atender os interesses de um único agente econômico.
O próximo passo deverá ser a construção de um marco regulatório, como a Ubrabio vem defendendo já há algum tempo, que permita a inserção de dois novos biocombustíveis na nossa matriz energética: o diesel verde (HVO) e o bioquerosene.
Donato Aranda é consultor técnico da Ubrabio (União Brasileira do Biodiesel e Bioquerosene) e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Donizete Tokarski é diretor superintendente da Ubrabio
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