Desde 1972, na cidade sueca de Estocolmo, as pautas ambientais começaram a galgar relevância, não só frente à sociedade civil, mas também em relação às lideranças diplomáticas das grandes e pequenas nações do Planeta.
Pode-se dizer que as discussões da época abriram caminho para que os debates acerca do meio ambiente tomassem proporções maiores e, inclusive, paradigmáticos.
Assim, por exemplo, foi o caso dos resultados obtidos no tão referendado Relatório Brundtland, de 1987, que, com maestria e simplicidade, conceituou o dito desenvolvimento sustentável, reunindo interesses aparentemente polarizados e mostrando como é perfeitamente possível sustentar um meio ambiente sustentável em meio à ação antrópica capitalista.
Apesar disso, foi no Rio de Janeiro, em 1992, com a Assinatura da Convenção Quadro das Nações Unidas acerca das Mudanças Climáticas (UNFCCC) que as questões relativas à emissão de Gases de Efeito Estufa (GEEs) alcançou notória relevância.
A partir de então, tais discussões e compromissos continuaram a ser firmados em diversos outros encontros da Assembleia Ambiental da ONU, até Paris, em 2015.
Fato é que, em nenhum de tais documentos, houve o estabelecimento de compromissos relativos à emissão de GEEs nos termos da aviação civil, quer seja nacional ou internacional.
Compromissos internacionais da aviação civil
Entretanto, desde 2010, nos termos da Organização Internacional da Aviação Civil (Oaci), iniciaram-se discussões a respeito da criação de um mercado de compensação e redução da emissão de tais gases nos termos da Aviação Civil, baseando-se nos temos da UNFCCC [1].
Nessa linha, o Carbon Offsetting and Reduction Scheme for International Aviation (Corsia), Market Based Measure (MBM) – criado pela Organização da Aviação Civil Internacional na 39ª Sessão da Assembleia da Oaci, em 2016 –, é um sistema que visa ao crescimento neutro de carbono [2] na aviação civil internacional, com metas que, atreladas ao long-term global aspirational goal (LTAG) [3], visam, até 2050, a alcançar emissões líquidas zero de CO2.
Nessa linha, para atingir seus objetivos, o regulamento relativo aos pilares e funcionamento do Corsia foi codificado por meio da adição do Volume IV no Anexo 16 da Convenção de Chicago de 1944, que trata da Proteção Ambiental. Nos termos de tal documento legal, são possíveis:
- (i) a compensação de emissões por meio de créditos de carbono e
- (ii) a redução das emissões por meio da utilização de combustíveis elegíveis ao Corsia (CEFs). Nesta oportunidade, nos interessa estudar, mesmo que de forma breve, acerca da redução das emissões por meio dos CEFs.
Nos termos do referido Anexo, o conceito de Combustível Elegível ao Corsia é relativo a: “um combustível sustentável de aviação Corsia ou um combustível de aviação com menos carbono Corsia, que um operador pode utilizar para reduzir seus requisitos de compensação”[4] [5].
Ou seja, diante de tal definição, extrai-se o entendimento de que são duas as possibilidades de satisfazer os requisitos do Corsia:
- (i) a utilização de combustíveis sustentáveis de aviação (sustainable aviation fuels – SAFs); bem como os chamados
- (ii) combustíveis de aviação com menos carbono (lower carbon aviation fuels – LCAFs).
Os primeiros são referentes a combustíveis renováveis ou derivados de rejeitos. Já os derradeiros são combustíveis que, apesar de fósseis, atendem os critérios de menor emissão de carbono requeridos.
Nesta oportunidade, tratando especificamente dos SAFs, tem-se que, apesar de seus critérios de elegibilidade terem sido publicados pela primeira vez em 2019 [6], os primeiros combustíveis certificados segundo os requisitos estabelecidos pelo Corsia foram datados de junho de 2023, produzidos por indústrias dos Estados Unidos, China, Holanda [7].
Os SAFs, que podem ser derivados de biomassa, resíduos, ou mesmo de fontes renováveis, tais como o hidrogênio, possuem diversos caminhos para sua produção, tais como a de Ácidos Graxos e Ésteres Hidroprocessados (HEFA); querosene parafínico sintético (FT-SPK); alcohol-to-jet (ATJ), dentre outros [8].
Importante mencionar que tais critérios e pathways são importantes, tanto para garantir a pretendida eficiência ambiental, bem como para garantir que ambos são do tipo drop-in, isso é “idênticos ao querosene fóssil na molécula, porém, derivados de biomassa”, assim não comprometendo e/ou exigindo adaptações das aeronaves e seus motores [9].
Regulação doméstica
No Brasil, a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), por meio do RBAC nº 38, aderiu integralmente os termos do supracitado Volume IV no Anexo 16 da Convenção de Chicago de 1944.
Apesar disso, o país só entra oficialmente no programa Corsia no ano de 2027, quando, em sua segunda fase, passará a possuir caráter mandatório para todos os países da Oaci.
Entretanto, com a produção de biodiesel e etanol, é possível dizer que o Brasil, faz tempo, está na rota do SAF, visto que, ainda em 2012, enquanto acontecia a Rio+20, realizou-se no país o primeiro voo experimental com biocombustível de cana-de-açúcar, com redução de aproximadamente 82% das emissões de CO², com um E195 [10].
Ademais, em 2021 foi promulgada a Lei 14.248/2021 [11] que estabeleceu Programa Nacional do Bioquerosene para o incentivo à pesquisa e o fomento da produção de energia à base de biomassas. Tal Programa, que tem como intuito a sustentabilidade da aviação nacional, estabelece compromissos do Governo Federal com o investimento no desenvolvimento de biocombustíveis, inclusive tendo sido reconhecido pela Icao [12].
Há de se considerar, porém que, apesar de tal avanço da legislação, há diversos desafios que se colocam frente à indústria dos SAFs no Brasil.
Sem delongas, mesmo com a promulgação da Lei supracitada, o país ainda carece da regulamentação de seu art. 3º, que trata justamente das formas de fomento à pesquisa, produção, comercialização e uso energético do bioquerosene produzido.
Ademais, o inc. II de tal artigo legal, apesar de prever a criação de benefícios fiscais incidentes sobre tais biocombustíveis, também não possui regulamentação, o que impede a redução de custos dos SAFs, obstando sua competitividade com os combustíveis fósseis.
Por fim, dentre outras coisas, menciona-se a falta de clareza acerca da divisão da competência regulatória entre as agências regulatórias (ANC, ANP, CNPE etc.) acerca do tema até o dado momento, o que demonstra a imaturidade regulatória brasileira nesse aspecto [13].
Em que pese todos estes desafios ao mercado interno brasileiro, em 21 de agosto de 2023, uma empresa brasileira foi a primeira produtora de etanol no mundo a ser certificada pela ISCC para produzir SAF nos termos requeridos Corsia (Certificação ISCC Corsia Plus).
Com isso, a empresa brasileira estreou uma das rotas de SAF, a Sugarcane Ethanol Alcohol-to-Jet (ATJ) que, de forma sintética se trata de “… etanol oriundo de cana de açúcar subsequentemente convertido em combustível drop-in por meio de desidratação, oligomerização e hidrodessulfurização”[14] [15].
Inclusive, para além da referida rota, nota-se que o país possui potencial de atacar outros pathways, quer seja dentro das variedades de ATJ, quanto no HEFA e FT-SPK [16] [17].
Entretanto, apesar de todo o otimismo que encampa a matéria, é necessário lembrar que tais combustíveis sustentáveis não irão – pelo menos ao dado momento – substituir totalmente os combustíveis fósseis, já que por questões operacionais e de segurança, devem ser a eles misturados, em suas devidas proporções estabelecidas pela Oaci [18].
Além disso, adiciona-se um desafio relacionado ao custo de tais SAFs, que, em todos os pathways existentes, superam os referentes aos combustíveis fósseis [19], o que pode ser superado com maiores investimentos e maior produção, o quais devem advir com a regulamentação mais clara a ser lançada sobre o tema, conforme acima citado.
Portanto, reconhece-se a relevância da implementação de um programa tal como o Corsia frente ao atual cenário da aviação internacional, bem como da inclusão de diferentes tipos de SAFs em seu bojo.
Além disso, verifica-se o protagonismo do Brasil na produção e comercialização de tais tipos de combustíveis, contribuindo para a cena nacional e internacional, uma vez estimulado por incentivos fiscais e regulatórios para estimular produção em escala.
Apesar disso, nota-se que o mundo terá um longo caminho a percorrer para, de forma plena, buscar meios cada vez mais sustentáveis e economicamente viáveis, visando o cumprimento saudável das metas estabelecidas.
Larissa Paganelli e Thiago de Oliveira Frizera são advogados do Kincaid Mendes Vianna Advogados
Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.
Referências
[1] https://unfccc.int/sites/default/files/894.pdf, p. 6
[2] https://www.gov.br/anac/pt-br/assuntos/meio-ambiente/corsia
[3] https://www.icao.int/environmental-protection/Pages/LTAG.aspx
[4] https://elibrary.icao.int/reader/229739/&returnUrl%3DaHR0cHM6Ly9lbGlicmFyeS5pY2FvLmludC9ob21lL3Byb2R1Y3QtZGV0YWlscy8yMjk3Mzk/X2dsPTEqMWZyOGI1OCpfZ2EqTWpBMk1ERXpNall3TXk0eE5qWTNPVE16T1RBMSpfZ2FfOTkyTjNZRExCUSpNVFk1TWpZME5UazRNQzQzTGpFdU1UWTVNalkwTlRrNU1DNHdMakF1TUEuLg%3D%3D?productType=ebook
[5] Do original: CORSIA eligible fuel. A CORSIA sustainable aviation fuel or a CORSIA lower carbon aviation fuel, which an operator may use to reduce their offsetting requirements.
[6] ICAO document – CORSIA Sustainability Criteria for CORSIA Eligible Fuels
[7] First sustainable aviation fuel batches certified under CORSIA (icao.int)
[8] CORSIA Supporting Document “CORSIA Eligible Fuels_LCA_Methodology” (icao.int)
[9] O que é SAF? Conheça as rotas de combustível sustentável de aviação (eixos.com.br)
[10] Brasil lança voo experimental com avião movido a etanol | Veja (abril.com.br)
[11] https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2021/lei-14248-25-novembro-2021-791992-publicacaooriginal-163943-pl.html
[12] https://www.icao.int/environmental-protection/GFAAF/Pages/Policies.aspx
[13] https://prh41anp.ppe.ufrj.br/images/documentos/congressos/BRICS/BRICS_Final.pdf
[14] https://www.iscc-system.org/certification/iscc-certification-schemes/iscc-corsia/
[15] Do original: “[…] sugarcane derived-ethanol, that is subsequently converted to drop-in fuel via dehydration, oligomerization and hydrotreating.”
[16] https://www.mdpi.com/1996-1073/14/16/4972
[17] https://prh41anp.ppe.ufrj.br/images/documentos/congressos/BRICS/BRICS_Final.pdf
[18] Conversion processes (icao.int)
[19] https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1002/bbb.2168
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