O encontro no Ministério de Minas e Energia (MME) em que foram apresentados os estudos (.pdf) técnicos relativos à adaptabilidade da frota nacional dos veículos com motores do ciclo Otto ao uso da gasolina C, composta com 30% de etanol anidro, foi positivo. O MME, a ANP e o Instituto Mauá estão de parabéns pela qualidade do trabalho entregue em tempo relativamente curto para os padrões do serviço público.
Agora, uma questão imprescindível é o estudo econômico sobre a ampliação do teor do anidro na gasolina C, com foco no impacto nos preços dos combustíveis e na inflação, a qual tensiona o mercado nacional e limita o acesso dos consumidores aos combustíveis e alimentos.
No início de fevereiro, a ANDC solicitou ao governo federal a realização de estudo de impacto econômico e concorrencial do eventual aumento dos biocombustíveis na gasolina C e no diesel B, em pelo menos três diretrizes: formação de preços dos biocombustíveis e o ambiente concorrencial, impacto no mercado de commodities agrícolas e os impactos na economia popular no curto prazo.
Em 2024, o volume de etanol combustível total (anidro + hidratado) foi de 33,5 bilhões de litros, sendo 65% consumido com etanol hidratado e 35% com etanol anidro, componente obrigatório da gasolina C. A hipótese em discussão representa deslocar do volume total de etanol combustível, de forma obrigatória, um percentual maior para o consumo em composição com a gasolina.
Esse volume ampliado de anidro na gasolina C necessariamente será consumido com o combustível fóssil e, portanto, não reduz de modo significativo a intensidade de carbono da matriz. Uma vez que queima uma porção maior de hidrocarboneto, quando comparado com o consumo do etanol hidratado, biocombustível puro, o qual reduz efetivamente a intensidade de carbono da matriz veicular por deslocar a fatia do mercado dos fósseis.
Assim, não há vantagem ambiental quando se deixa de queimar etanol hidratado e se passa a queimar etanol anidro com gasolina.
Do ponto de vista econômico é provável que se aumente o preço dos combustíveis do ciclo Otto pelo fato de a política E30 reduzir o potencial de oferta do etanol hidratado, limitando a externalidade positiva desse, que é um produto substituto da gasolina C. Quando é apresentado ao consumidor com maior oferta e preços menores, o etanol hidratado desloca o consumo do fóssil e provoca redução nos preços, num ciclo virtuoso de razoabilidade dos preços finais dos dois produtos.
A narrativa de autossuficiência da gasolina C é no mínimo estranha nesse momento e contraria a lógica recente da política de preços do governo, que zerou a tarifa de importação do milho (matéria-prima do etanol), entre outros produtos, na expectativa de que a entrada do produto de fora do país equilibre os preços internos.
Aliás, é preciso observar que o comércio exterior de combustíveis compõe o arcabouço regulatório setorial, historicamente contribuindo para assegurar o suprimento do mercado nacional, com produtos de qualidade e razoabilidade dos preços. Limitar ou dificultar artificialmente a importação de combustíveis agrava a concentração econômica do mercado interno, restringe a concorrência e prejudica os consumidores em função do potencial aumento dos preços.
O raciocínio lógico e correto do governo federal de zerar os impostos de importação dos produtos com preços no mercado interno elevados se aplica ao caso da gasolina, que está mais barata no mercado externo, quando comparada com os preços vendidos no mercado nacional.
É curioso que, exatamente neste momento de conveniência para o consumidor, vamos deixar de importar gasolina, mantendo preços elevados no mercado interno e reduzindo a oferta potencial do etanol hidratado, o qual poderia provocar melhor equilíbrio preços.
Salta aos olhos uma movimentação inoportuna ao interesse público de aumentar o teor de anidro na gasolina C. Assim como também o é o aumento do biodiesel no diesel, não só pelos preços altos dos combustíveis e dos custos operacionais de logística e manutenção no consumo, mas também pelos impactos destes nos preços dos alimentos e por conseguinte na carestia geral que vive o país.
Grupos de interesses setoriais vêm forçando a barra, criando narrativas descoladas da realidade, no intuito de induzir o Estado a obrigar a queima de matérias-primas que atendem o mercado de alimentos como combustível. O olho gordo desses grupos econômicos, atitude perceptível nos sorrisos largos durante o encontro do MME, merece precaução e atenção de todos aqueles que têm responsabilidade pública neste país, onde os consumidores sofrem abusos de toda ordem.
Francisco Neves é diretor-executivo da Associação Nacional dos Distribuidores de Combustíveis (ANDC), engenheiro agrônomo e mestre em Bioenergia, e foi superintendente de Abastecimento e de Fiscalização da ANP.