A ponto de terminar, o ano de 2024 foi fecundo em matérias legislando sobre a transição energética. Em agosto, foi sancionada a lei 14.948, marco para produção de hidrogênio de baixo carbono. Em outubro, a lei 14.993, que dispõe sobre o que ficou conhecido como Programa Combustível do Futuro.
Em 12 de dezembro foi a vez da lei 15.042, que regulamenta o mercado de carbono. Por fim, depois de aprovado pelo Senado, voltou para Câmara o projeto que institui o Programa de Aceleração da Transição Energética.
É um conjunto notável que fixa o arcabouço legal para as próximas duas décadas. De certa forma, compensa o retardo acumulado depois de meados da década passada, mas, a falta de resultado preocupa: até o ano passado, as emissões de gases de efeito estufa teimaram em crescer.
Aliás, chama a atenção o aumento das emissões a despeito do desempenho econômico medíocre desde 2016. A propriedade e a eficácia das políticas públicas anteriores devem ser examinadas à luz de seus objetivos, resultados e quanto ao custo imposto à sociedade.
Na defesa do interesse coletivo e tendo em vista o aprimoramento da ação estatal, é imperiosa a necessidade de avaliar as políticas em curso.
Este é bem o caso do RenovaBio. O executivo, o legislativo e o judiciário se debruçaram sobre o assunto em ocasiões distintas neste final de ano.
O alcance da discussão em torno da lei 13.576, de 2017, que criou o programa, é uma evidência de seus impactos, da falta de resultados e da necessidade ajustes, de modo a obter maior alinhamento das ações, tendo em vista uma transição energética ordenada e justa.
No âmbito do MME, da ANP e da EPE, alguns eventos no Rio de Janeiro e em Brasília comemoraram o quinto ano de lançamento dos CBIOs, os certificados de descarbonização, e o sétimo ano do Programa Nacional de Biocombustíveis, o RenovaBio, sancionado ainda pelo presidente Michel Temer (MDB).
O programa resumia o engajamento do país ao Acordo de Paris e o compromisso de usar os mecanismos de mercado para descobrir o preço do carbono e financiar a transição por meio de um título “verde”.
O negócio com os certificados comercializados na B3, com envolvimento de bancos e corretoras, era tido como o primeiro mercado de carbono do Brasil; pelo menos, foi assim que o presidente Jair Bolsonaro (PL) o apresentou em Glasgow, em 2021, na COP26.
Voltados para comemorações, os encontros promovidos pelo MME não concederam espaço algum para críticas e opiniões dissidentes. No entanto, não faltam vícios e fragilidades que explicam a razão dos CBIOs, até hoje, não serem enquadrados como créditos de carbono e porque não se trata de um mercado de carbono, de acordo com o que foi aprovado pelo Congresso e que existe em outros países. Além do mais, pouco destaque é dado aos valores envolvidos no RenovaBio.
Sem os custos de transação, apenas considerando a soma transferida, foram R$ 4 bilhões em 2023. Contando os custos de transação e se os preços dos CBIOs não mudarem (o que não é nada certo), serão cerca de R$ 22 bilhões no próximo quinquênio.
Trata-se de uma obrigação parafiscal suis generis: sua cobrança recai sobre os consumidores, é paga pela distribuidora e beneficia somente o produtor de biocombustível. Na verdade, é um custo imposto à sociedade, na medida em que toda ela se locomove por meio de automóveis, ônibus e caminhões.
Os valores anteriores são absolutamente significativos e justificam o debate em curso sobre o programa, assim como é definitivamente necessária a atenção dos órgãos de controle com vistas a apurar a adequação e finalidade pública da política em discussão.
A propósito, mas, em outra seara, um segundo evento a ser trazido à baila ocorreu no judiciário. A 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em decisão unânime proferida no dia 30 de outubro, concedeu provimento parcial ao Agravo de Instrumento 1035728-17.2023.4.01.0000.
A decisão assegura à autora (uma distribuidora de combustíveis) o direito de converter os valores depositados judicialmente em créditos de descarbonização (os CBIOs). A compra é obrigatória para o cumprimento das metas de aquisição dos títulos de descarbonização impostas a este agente pelo RenovaBio.
No caso, a decisão reconhece a especulação com os títulos e a natureza assimétrica de um mercado cuja oferta é facultativa, enquanto a demanda é compulsória e arbitrada pelo poder público. O fato é que o agente regulado conseguiu se proteger da especulação e da volatilidade dos preços dos CBIOs.
Em um universo de uma centena de distribuidoras, pelo menos outras vinte e cinco recorreram à justiça e o imbróglio deve subir para os tribunais superiores. O risco de manipulação é um problema grave apontado também pelo Tribunal de Contas da União, em seu relatório de auditoria operacional sobre as políticas federais relativas aos biocombustíveis (Relatório de Auditoria TC 015.561/2021-6).
No documento do órgão de controle do Poder Legislativo, são salientados, entre outros, os desafios referentes às metas de aquisição e à confiabilidade dos lastros dos certificados.
Redistribuição de receitas e novas responsabilidades ambientais
Também com o objetivo de remediar falhas na concepção original do programa, no último dia 12 de dezembro, o Congresso Nacional aprovou o projeto de lei 3.149/2020.
Ele estabelece que as receitas com a comercialização dos títulos devem ser repassadas aos agricultores, produtores da matéria-prima dos biocombustíveis, no mínimo em 60% do valor apurado. A disputa pelo excedente econômico envolve os diferentes segmentos da cadeia de produção dos biocombustíveis.
E, como visto, o valor em questão é suficiente para despertar cobiça. Até aqui, em razão do desenho do programa, esses recursos são apropriados pelo setor industrial; a agroindústria formada pelas grandes empresas integradas do setor sucroalcooleiro.
Segundo os parlamentares, no necessário processo de redução dos gases de efeito estufa, a condição do agricultor não foi devidamente considerada. O projeto reconhece uma partilha indevida da renda gerada com a venda dos títulos. Para muitos, a lei 13.576/17 já apontava que os recursos dos CBIOs deviam estar associados a melhorias nas práticas agrícolas, por ser essa etapa com a maior emissão.
O Projeto de Lei em tela é positivo ao detalhar o destino dos recursos, inclusive para que se possa apurar a efetiva redução da pegada de carbono e os benefícios da política ambiental.
Além disso, não escaparam aos congressistas os questionamentos quanto à integridade e confiabilidade das certificações, ao lastro dos negócios e à especulação com os títulos. A respeito, a mesma matéria legislativa estabelece que a irregularidade administrativa no negócio dos CBIOs deverá ser enquadrada como crime ambiental.
Neste ponto, a intenção do legislador pode até ser boa, porém, na prática, acaba por criar mais problema do que solução. Ao enquadrar a irregularidade como crime ambiental, necessariamente todos os atos que concorrem à execução do RenovaBio serão passíveis de investigação criminal.
Assim, os agricultores, industriais, técnicos das áreas privada e pública, empresas certificadoras, operadores dos títulos (quem compra e vende) e distribuidores de combustíveis, todos poderão ser criminalmente responsabilizados por seus atos.
Tendo a análise do ciclo de vida por princípio, a responsabilidade ambiental permeará todas as etapas do processo. Ademais, é possível que a instituição responsável por supervisionar a certificação e definir a nota de eficiência energético ambiental (NEEA) deixe de ser a ANP e passe para o Ibama, instituição com atribuição legal e competência técnica para atuar na política ambiental, inclusive para instruir os processos na esfera criminal.
Depois de sete anos da criação do RenovaBio e cinco da implementação dos CBIOs, a experiência gerou um elevado sobrecusto social e não criou o pretendido mercado de carbono.
A transferência imposta, por sua magnitude, tornou-se fonte de disputa e, para agravar, não parece ter trazido nenhum resultado, uma vez que o consumo dos combustíveis fósseis continuou aumentando, a participação percentual dos biocombustíveis diminuiu e as emissões nos transportes cresceram até 2023.
Ademais, a natureza coercitiva e nada isonômica do gravame imposto pela compra compulsória apenas às distribuidoras de combustíveis não se justifica em termos climáticos, ambientais, sociais, econômicos e mesmo técnicos.
Remunerar adequadamente as externalidades positivas dos biocombustíveis de forma a financiar os ganhos de produtividade no campo não encontra resistência na sociedade. Legisladores e agentes públicos veem como uma alternativa viável para mitigar as emissões, ao mesmo tempo em que o valor é apropriado onde ele foi gerado: na própria zona rural.
Não se discutem os princípios e as prioridades, nem mesmo os meios. Aqui, recapitulados brevemente, os debates em curso dizem respeito à arquitetura do programa, aos mecanismos econômicos de intervenção do Estado no mercado e não abordam nem todos os aspectos e impactos da referida política pública.
A ausência dos produtores, refinadores e importadores de derivados do petróleo, em uma política setorial que se apoia explicitamente na análise do ciclo de vida, é uma idiossincrasia entre muitas outras. O impacto na concentração do mercado, o evidente impacto inflacionário e o sobrecusto daqueles que residem distante das bases de distribuição também não foram abordados.
A tímida participação das partes não obrigadas e não envolvidas com o setor, ou seja, os investidores do mercado de capitais muito menos. A natureza declaratória das informações prestadas pelos beneficiários e a falta de controle sobre a aplicação dos recursos gerados também não o foi.
Não faltam argumentos para chamar a atenção quanto a oportunidade e, mesmo, a necessidade de avaliar a iniciativa que ganhou tração em plena pandemia, sem muita discussão com a sociedade e que, hoje, além de não trazer resultado, não dialoga com as demais políticas públicas, em particular com a nova lei do mercado do carbono.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.
Luís Eduardo Duque Dutra é professor adjunto da Escola de Química da UFRJ, doutor em Ciências Econômicas e seu último livro é Capital Petróleo: A saga da indústria entre guerras, crises e ciclos, publicado pela Editora Garamond.