Biocombustíveis

Biogás, uma solução energética para a Amazônia Legal

Biogás deveria receber recursos como os que são destinados a outras fontes renováveis para o suprimento de energia na Amazônia, defendem André Andriw e Marcos Cintra

Biogás, uma solução energética para a Amazônia Legal. Na imagem, obras de instalação do Linhão de Tucuruí, no trecho de conexão de Manaus, em 2013. Complexidade da região mantém regiões isoladas do sistema nacional de energia (Foto: PAC/Ministério do Planejamento)
Obras de instalação do Linhão de Tucuruí, no trecho de conexão de Manaus, em 2013. Complexidade da região mantém regiões isoladas do sistema nacional de energia (Foto: PAC/Ministério do Planejamento)

Transformando literalmente lixo, dejetos, efluentes e esgoto em combustível via biodigestão anaeróbia, o biogás é uma tecnologia renovável em crescente ascensão. Marcado pelo seu caráter descentralizado, esse bicombustível é um importante aliado da transição energética sustentável em função da redução de emissões de metano (CH4) e dióxido de carbono (CO2) e da flexibilidade tecnológica e processual para sua fabricação.

Europa, China e EUA concentram 90% da produção global do biogás, utilizado sobretudo para gerar eletricidade em regiões agrícolas e urbanas e para transporte e aquecimento, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE).

A Europa é a líder nesse ranking, usando resíduos urbanos, bagaço de culturas agrícolas e captura direta de metano na agropecuária.

Na Alemanha, seu principal mercado, a geração elétrica com biogás subiu de 3 GW, em 2010, para 7,5 GW em 2021. Usando dejetos da criação de porcos e resíduos urbanos, a China é protagonista na Ásia, gerando 2GW.

Há estímulos do governo chinês para uso desse energético nos transportes pesados atrelados ao sistema produtivo da matéria-prima, como fazendas e fábricas, impulsionando o desenvolvimento local.

Maturidade do biogás no Brasil

No Brasil, o biogás é uma tecnologia em processo de afirmação, com capacidade de geração de 417 MW. O número de plantas subiu de 653, em 2020, para 755 em 2021, segundo  levantamento do Centro Internacional de Energias Renováveis – CIBiogás. O crescimento, de 16%, é concentrado no eixo Sul-Sudeste-Centro-Oeste, embora Norte e Nordeste tenham bom potencial e projetos pioneiros, como a usina a gás no Aterro Sanitário de Manaus, de 10 MW.

A Amazônia Legal é a casa de 28 milhões de brasileiros, concentrados principalmente no Amazonas, Pará, parte do Maranhão, Rondônia e Mato Grosso.

Rica não só em resíduos urbanos mas também em dejetos da produção de peixe e rejeitos da fabricação de farinha de mandioca, a Amazônia tem um potencial de produzir, anualmente, 537 milhões metros cúbicos (Mm³) de biogás, suficientes para gerar 1,1 TWh de eletricidade, o equivalente ao abastecimento de 556 mil residências e beneficiar 2,2 milhões de pessoas milhões, de acordo com estudo do Instituto Escolhas.

Potencial do biogás na Amazônia

Elaboração dos autores, com base em dados do Instituto Escolhas (2021)
Elaboração dos autores, com base em dados do Instituto Escolhas (2021)

A identificação do potencial de geração do biogás nessa região considera sobretudo a densidade populacional e atividades econômicas que geram volumes expressivos de resíduos sólidos.

Por não dispor de processos e logísticas de reciclagem, este material poluidor não tem recebido tratamento adequado, destacando importante externalidade positiva do biogás: estimular investimentos em aterros sanitários.

Estima-se que só o Pará pode produzir 168 milhões de Mm³ de biogás; o Maranhão vem em seguida, com volume estimado em 113 Mm³. Com efeito, o município de Rosário, na Região Metropolitana de São Luiz, inaugurou, em 2019, usina de geração de energia a partir do biogás com capacidade de 2MW/h que atende pequenas e médias empresas locais.

Dados da Associação Brasileira do Biogás (ABiogás), revelam novas fronteiras para a fonte, como o aproveitamento dos dejetos da produção de proteína animal, com grande potencial no Mato Grosso, estimado em 409,9 Mm³, o equivalente à geração de 11.226 GWh/ano.

Roraima, cuja limitação energética atrapalha seu desenvolvimento – único estado desconectado do Sistema Interligado Nacional (SIN) –, tem, no fortalecimento do agronegócio, potencial de 318 Mm³ a partir do beneficiamento da proteína animal e 6,5 milhões Mm³ na produção agrícola.

A entrada em operação da UTE Jaguatirica II, da Eneva, proporcionou energia confiável à capital, mas ainda há usinas a diesel a serem substituídas no interior de Roraima. Nesse sentido, a descentralização, característica do biogás, facilita sua inserção em regiões produtoras de proteína animal e agricultura.

Esse movimento aperfeiçoaria as relações socioeconômicas no espaço rural, gerando empregos de melhor qualidade, auxiliando na fixação das famílias na região e mitigando riscos socioambientais.

Velhos desafios atrapalham o desenvolvimento do biogás na Amazônia

O desenvolvimento do biogás na região amazônica esbarra em velhos problemas estruturais, como a imperícia no planejamento e operação dos sistemas isolados.

Há tempos sucateados pela ausência de uma política fundamentada na segurança jurídica e no aperfeiçoamento tecnológico, os sistemas isolados têm sido incapazes de absorver soluções mais sustentáveis e substituir integralmente o conjunto de termelétricas, majoritariamente a diesel, que fornecem energia aos seus consumidores.

Uma das razões foi a demora na introdução das fontes renováveis em leilões de geração nos sistemas isolados.

Embora a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) apontasse o potencial energético renovável da Amazônia, só a partir da falência do sistema elétrico de Roraima, em decorrência da crise venezuelana, o Ministério de Minas e Energia (MME) permitiu, em 2018, soluções alternativas ao diesel, capazes de reduzir emissões e a Conta de Consumo de Combustível (CCC).

A CCC, na casa de R$ 7 bilhões anuais, é paga por todos os consumidores brasileiros e representa um subsídio ao diesel, o que prejudica a competitividade de tecnologias emergentes, como biogás e biometano.

Redirecionar os instrumentos de apoio para inserir o biogás nos sistemas isolados

É inegável o esforço de legisladores, reguladores e empreendedores para ampliar a participação do biogás e do biometano na matriz energética brasileira. A Política Nacional de Biocombustíveis – RenovaBio, de 2017, é marco importante para impulsionar as soluções de biomassa no país.

A Nova Lei do Gás (14.134/21), por sua vez, contribui ao criar ambiente concorrencial que estimula a entrada de novos agentes e potencializa investimentos em infraestrutura que pode auxiliar o crescimento do biogás. Recentemente, investimentos em biometano foram desonerados de PIS/COFINS ao serem incluídos no Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura (Reidi).

Entretanto, no âmbito da competição entre fontes renováveis, há vantagem para tecnologias maduras e de menor custo, como solar fotovoltaica e eólica, que alcançaram essa performance por terem sido subsidiadas.

Essas tecnologias, por características geográficas e potencialidade energética, pouco avançaram na Amazônia Legal, fazendo com que os estados amazônicos financiem, mas não se beneficiem, dos avanços dessas fontes.

Por outro lado, há problemas na aplicabilidade dos instrumentos econômico-financeiros para apoiar soluções de energia renovável, o que acaba gerando um efeito regressivo, apontado pelo economista Rodrigo Santana em seu estudo sobre a regulação e partilha de subsídios da geração distribuída (GD).

Essa externalidade negativa privilegia tecnologias maduras que já receberam suporte como, por exemplo, do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas (PROINFA).

É importante que o biogás, que dispõe de atributos como descentralização, aproveitamento de dejetos e sustentabilidade, não tenha seu caminho obstruído por medidas que distorcem a competição entre as fontes.

O desenvolvimento desse combustível na Amazônica Legal passa por políticas coordenadas e integradas com as atividades econômicas que geram matéria-prima para sua produção, potencializando benefícios socioeconômicos e ambientais locais.

André Andriw é fundador e CEO da Assentia – Consultoria em P&D e mestre em Relações Internacionais com ênfase em Economia da Transição Energética pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

Marcos Cintra é executivo do setor de petróleo, gás e energia, mestre em Políticas Públicas (IE-UFRJ) e doutor em Energia (IEE-USP). Atualmente, é Head de Relações Institucionais da Eneva.