A transição explicada

Biocombustíveis e alimentos, um falso jogo de soma zero

Dados mostram que expansão de biocombustíveis não comprometeu segurança alimentar: cana ocupou apenas 1,6% de vegetação nativa, e setor gerou 2,2 mi de empregos com salários 46% maiores, escreve Glaucia Souza

Tratores em operação em lavoura de cana-de-açúcar (Foto Kathryn Bowman/Pixabay)
Tratores em operação em lavoura de cana-de-açúcar (Foto Kathryn Bowman/Pixabay)

Na teoria dos jogos, um jogo de soma zero é onde o sucesso de um jogador resulta no fracasso de outro. Por exemplo, em uma partida de futebol, se uma equipe vence, a outra perde.

Por anos, a narrativa sobre a expansão dos biocombustíveis tem sido dominada pelo dilema da competição entre bioenergia e alimentos, um falso jogo de soma zero.

Culturas tradicionais como soja, milho e cana-de-açúcar foram escrutinizadas e descartadas em algumas políticas que visam a descarbonização do transporte substituindo combustíveis fósseis por biocombustíveis. 

Há uma década, a disponibilidade de terras era uma preocupação. Demonstramos que uma pequena fração de terras seria necessária para a produção de culturas energéticas para substituir uma quantidade significativa de combustíveis fósseis.

Menos de 13 milhões de hectares estavam em uso para a produção de biocombustíveis, de um total de 1,5 bilhão de hectares em uso para a produção de alimentos e terras aráveis, e 3 bilhões de hectares em uso para pastagens.

Além disso os biocombustíveis poderiam se expandir em terras de pastagens degradadas, recompondo os solos e potencialmente disponibilizando novas áreas para a produção de alimentos.

A Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês) estima que precisamos substituir 10% dos combustíveis fósseis por biocombustíveis até 2030 como parte dos esforços rumo à neutralidade de carbono em 2050.

No entanto, o progresso tem sido limitado principalmente devido às dificuldades tecnológicas na produção de biocombustíveis a partir de resíduos.

E agora, com a recente demanda pela substituição dos combustíveis fósseis da aviação e navegação, reacende-se o debate sobre o uso de culturas alimentares para biocombustíveis e quanto isso pode impactar a segurança alimentar.

Em um mercado competitivo, duas empresas competidoras podem se beneficiar mutuamente de inovações e melhorias de produtos.

Por exemplo, se a Empresa A lança um novo smartphone que aumenta a demanda por um componente específico, a Empresa B pode inovar, oferecer produtos complementares ou criar sinergias que reduzam o custo desse componente. O crescimento do mercado não é limitado a uma soma zero. 

A agricultura brasileira exemplifica isso: a expansão da produção de bioenergia não prejudicou a produção de alimentos, mas sim a complementou.

Nos últimos 50 anos, o Brasil implementou uma matriz energética amplamente renovável, com 16,9% da energia utilizada proveniente da cana-de-açúcar e 15,8% de outras fontes de biomassa, que contribuem para nossos 86,1% de eletricidade renovável. 

De 1975 a 2024, o Brasil evitou a emissão de 1,4 bilhão de toneladas de CO2eq com o etanol e 0,2 bilhão de toneladas com o biodiesel. E fez tudo isso se tornando, em paralelo, o maior produtor e exportador mundial de soja, café, suco de laranja, açúcar, carne de frango e bovina, além de milho e celulose.

Notavelmente, o país preserva 66% de seu território com florestas. A expansão da cana-de-açúcar ocorreu principalmente em pastagens degradadas e áreas agrícolas, com menos de 1,6% sobre a vegetação natural.

Além disso, biocombustíveis impactam positivamente indicadores socioeconômicos, como alfabetização, escolaridade e salários. O setor sucroalcooleiro emprega formalmente 86,98% da força de trabalho e oferece salários 46% maiores em comparação a outras culturas.

Em 2023, gerou 2,2 milhões de empregos e aumentou o PIB per capita em municípios com usinas. O Programa PNPB quadruplicou a renda familiar de pequenos produtores de soja.

A bioenergia sustentável, com boa governança, pode beneficiar a segurança alimentar. A integração da produção de alimentos e bioenergia, como a segunda safra da soja com o milho ou da cana com o amendoim, aumenta a eficiência, reduz as emissões e traz benefícios ambientais. 

Exemplos como esses amplamente estudados na academia indicam que a bioenergia tem um impacto limitado na disponibilidade de alimentos, podendo inclusive beneficiar a produção alimentar em escalas familiares

Por outro lado, a maioria dos relatos negativos dessa composição vem de países desenvolvidos e é baseada em modelagens, não em observações da vida real. Não há correlação entre impactos da bioenergia e o fato de a cultura ser alimentar ou não.

Em um ano em que o Brasil sediará a COP30, um evento global crucial para discutir o avanço da agenda climática de forma sustentável, é fundamental alinhar o conhecimento científico com a narrativa da sustentabilidade da bioenergia nos principais foros de tomada de decisão.

Como subsídio para tanto, sugiro visitarem a ficha informativa do Programa Fapesp de Pesquisa em Bioenergia BIOEN, que fornece dados sobre a trajetória de descarbonização do Brasil, descrevendo suas políticas, modelo agrícola e o potencial de outros países do Sul Global seguirem um caminho semelhante.

A colaboração global para combater as mudanças climáticas beneficia a todos, e a integração da bioenergia pode transformar o desafio da segurança alimentar num jogo em que todos ganham.

Este artigo expressa exclusivamente a posição da autora e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculada.


Glaucia Mendes Souza é professora titular da Universidade de São Paulo e Líder da Força Tarefa para a Descarbonização do Transporte com Biocombustíveis do Programa de Colaboração Tecnológica da Agência Internacional de Energia (IEA).

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