SAF

Barreiras a biocombustíveis brasileiros podem dificultar descarbonização do setor aéreo

Discussões envolvem metodologia utilizada pelo Corsia para medir as emissões de carbono no ciclo de vida do combustível sustentável de aviação

A gerente de Meio Ambiente e Transição Energética da Anac, Marcela Anselmi
A gerente de Meio Ambiente e Transição Energética da Anac, Marcela Anselmi | Divulgação

As barreiras protecionistas impostas ao Brasil com a justificativa de critérios ambientais, sobretudo pela Europa, podem comprometer o papel do país na descarbonização do setor aéreo global, avaliam especialistas. 

Uma das discussões envolve metodologia utilizada pelo Corsia para medir as emissões de carbono no ciclo de vida do combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês). O debate trata principalmente do SAF produzido a partir de óleo de soja no Brasil — conhecido como rota HEFA —, o que pode impedir a liderança do país na produção e exportação do biocombustível.

O Corsia estabelece que a partir do ano de 2027, as emissões de carbono dos voos internacionais, acima dos níveis observados na média do biênio de 2019-2020, deverão ser compensadas com a aquisição de créditos de carbono ou por meio do uso de combustíveis elegíveis, como o SAF.

Segundo Marcela Anselmi, assessora Internacional e de Meio Ambiente da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), qualquer tipo de barreira a biocombustíveis brasileiros pode prejudicar o alcance de metas de descarbonização do setor aéreo, uma vez que não haverá SAF suficiente para atender à demanda. 

“Mesmo com toda a capacidade produtiva [de SAF], de hoje e projetada, ainda assim a aviação não vai conseguir cumprir os objetivos de longo prazo”, disse durante workshop promovido pelo Ministério de Minas e Energia (MME), nesta quarta (27/11). 

O evento discutiu a regulamentação do programa Combustível do Futuro, sancionado em outubro, que estabelece, entre outras metas, a redução de gases de efeito estufa (GEE) de voos domésticos a partir de mandatos para SAF.

A meta será de 1% de descarbonização dos voos domésticos do Brasil por meio do uso de SAF em 2027, aumentando em 1% ao ano até 2037. 

“Se começarmos essa discussão já com barreiras, esse mercado não nasce”, afirmou Anselmi. 

“É necessário que tenhamos uma discussão técnica, e que nos fóruns internacionais não permitamos que isso se torne uma pauta comercial de competitividade. O Brasil tem como entregar de maneira mais eficiente esse biocombustível. Temos vantagem comparativa e precisamos que não haja uma discussão baseada em quem ganha mais ou menos, porque assim todo mundo perde”, acrescentou.

A conta do carbono e do desmatamento

O workshop acontece na mesma semana em que o projeto de lei 1406/2024 poderá entrar na pauta de prioridades da Câmara dos Deputados, propondo que o governo brasileiro seja proibido de assinar acordo internacional com cláusulas ambientais que restrinjam a exportação de produtos brasileiros, sem que os países signatários adotem medidas de proteção ambiental equivalentes.

Fabio Vinhado, superintendente adjunto da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), destacou os desafios de alinhar as diferentes metodologias de contabilidade de carbono, como as do programa brasileiro de biocombustíveis, o Renovabio, e do Corsia, por exemplo. 

Ele lembrou que o Renovabio possui uma regulamentação com os critérios de certificação que já contempla a rota HEFA, utilizando o Renovacalc, ferramenta de cálculo de intensidade de carbono de biocombustíveis, desenvolvida por pesquisadores brasileiros. 

“A missão que temos é buscar um alinhamento metodológico do Renovabio com o Corsia. Teremos que ver o quanto iremos alinhar os programas, se parcialmente ou totalmente. É um debate do qual não poderemos fugir”, afirmou. 

Uma das principais diferenças entre as metodologias do Renovabio e Corsia está na consideração dos impactos no uso da terra e desmatamento. 

O Corsia inclui no cálculo de emissões critérios de Mudança Direta de Uso do Solo (DLUC) e Mudança Indireta de Uso do Solo (ILUC), e desconsidera o uso de matérias-primas provenientes de áreas desmatadas até 2008. 

Enquanto isso, o Renovabio estabelece critérios de elegibilidade baseados no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e considera apenas áreas desmatadas após 2018. 

Essa diferença de metodologia coloca o biocombustível brasileiro em posição de desvantagem em relação ao SAF produzido em outras regiões do mundo. 

“Para se ter uma ideia, o SAF da rota HEFA, produzido de óleo de soja brasileiro, com as referências do Corsia, quantifica uma intensidade de carbono de 27, que se soma à intensidade de carbono base. Isso penaliza muito [o SAF brasileiro]”, explica Vinhado.

“Uma grande balela”, diz executivo da Azul

O chefe de sustentabilidade da companhia aérea Azul criticou as barreiras impostas principalmente pela Europa, que põem em xeque a sustentabilidade dos biocombustíveis brasileiros.

“O fator de emissão base do HEFA brasileiro mais alto que o fator de emissão de HEFA do restante do mundo, o que é uma grande balela”, afirmou.

Ele elogiou o programa Combustível do Futuro, por estabelecer um mandato focado na redução das emissões e não em volume de SAF.

“Quando o Brasil coloca opções para as companhias aéreas, para que toda a cadeia de valor possa trabalhar em função do combustível mais eficiente para a redução, estamos fomentando o desenvolvimento da cadeia e fugindo de uma lógica volumétrica, que na minha opinião atende a interesses protecionistas legítimos do mercado europeu especialmente”, disse Oliveira.

Segundo ele, a diplomacia brasileira precisa atuar para quebrar barreiras comerciais e preconceitos contra a agricultura e a produção de biocombustíveis no país. 

“Nenhuma empresa aérea vai atingir a neutralidade climática sem SAF. Se estamos falando de redução de emissão, vejo muita discussão em âmbito internacional muito mais ligada a protecionismo de mercado do que de fato com a intenção de descarbonizar”, afirmou. 

“Temos tudo na mão para ser o líder, mas a grande barreira para o Brasil se tornar um líder na produção de biocombustível e descarbonização de toda a indústria de transporte no mundo, não somente da aviação, como marítimo e terrestre, é o nosso posicionamento internacional nesses fóruns e a discussão bem fundamentada do nosso papel como fornecedor de biocombustível para o mundo”, completou o executivo da Azul. 

Diplomacia brasileira no G20

O Brasil tem promovido um intenso trabalho diplomático para fortalecer o papel dos biocombustíveis no cenário internacional de descarbonização. 

Na reunião de líderes do G20, a presidência brasileira conseguiu que a declaração final reiterasse o compromisso de reconhecimento mútuo de padrões de medição de emissões, bem como das circunstâncias locais e neutralidade tecnológica. 

“Tudo nasce na bioenergia. A presidência do G20 e a coordenação do grupo de trabalho de transição energética pelo Ministério de Minas e Energia, no âmbito do G20, vemos muito bem isso. Precisamos valorizar essa vocação”, disse Marlon Arraes Leal, diretor do departamento de biocombustíveis do MME. 

Ele reforçou também a importância de uma regulamentação robusta  do Combustível do Futuro considerando modelos inovadores como o book and claim, que permite que companhias aéreas de outros países comprem créditos de carbono de empresas do setor que utilizem SAF nas suas operações. 

Isso possibilitaria que empresas aéreas internacionais comprassem créditos de carbono de companhias brasileiras que operam aeronaves movidas a SAF no Brasil.

“Temos que ser capazes de ter uma regulamentação robusta, capaz de contornar as nossas limitações orçamentárias. Somos um país que não tem recurso financeiro para subsidiar esse tipo de indústria”, afirmou Leal. 

“E temos que nos valer de olhar oportunidades de desenhar junto com modelo de comercialização do SAF atrelado ao book and claim. Poderemos minimizar os impactos que esse mandato poderia trazer para o consumidor brasileiro”, completou.