Câmara aprova privatização da Eletrobras em sessão marcada por contradições

Liberais e esquerda lutaram contra privatização por MP que garante investimentos estruturantes no mercado de gás

Discussão e votação de propostas. Dep. Elmar Nascimento (DEM - BA)
Discussão e votação de propostas. Dep. Elmar Nascimento (DEM - BA)

BRASÍLIA – A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta (19), por 313 votos favoráveis, a MP 1031, que permite a capitalização da Eletrobras e prevê a contratação de usinas termelétricas e pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), com critérios locais para garantir a distribuição de investimentos pelo país. O texto segue para o Senado Federal.

Tais medidas eram combatidas por áreas técnicas do governo desde a presidência de Michel Temer.

A ação do Ministério de Minas e Energia (MME) foi crucial para evitar a aprovação de estímulos a construção de térmicas e gasodutos na Lei do Gás, no final do ano passado. A posição foi defendida pela base aliada do governo na Câmara.

Desde o início do atual governo, a Economia defende a redução de subsídios, muitos deles cruzados, no setor de energia como forma de diminuir a conta de luz – um alvo da equipe era evitar a extensão do Proinfa. A prorrogação por mais 20 anos foi aprovada pelos deputados no substitutivo da MP 1031.

Em troca da preservação do modelo de capitalização da Eletrobras, que levará a perda de controle da União e garantirá entrada de recursos para o Tesouro, o governo apoiou quase incondicionalmente o texto do relator Elmar Nascimento (DEM/BA).

A contratação das térmicas vinha sendo negociada desde a aprovação da Lei do Gás. O plano do MME nunca foi, contudo, incluir numa lei a obrigação de contratação de 6 GW nos chamados leilões locacionais.

Há diversas medidas no texto que prometem conter os efeitos desses estímulos nos preços das tarifas, como o repasse de parte dos recursos da descotização das usinas e o superávit de Itaipu Binacional para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) para modicidade tarifária do mercado cativo.

O governo comemorou a aprovação. Nas redes sociais, o secretário de Desestatização, Diogo Mac Cord, considerou que a Câmara aprovou “um texto muito bom” e o ministro Bento Albuquerque destacou que a medida “traz muitos benefícios para o consumidor”.

Restou ao setor de energia o arrepio frente às possíveis distorções na política energética vigente. O Fórum das Associações do Setor Elétrico (FASE), que reúne 26 associações setoriais, avaliaram que o projeto aprovado pelos deputados é desequilibrado e que dispositivos como a obrigação de contratação de térmicas e PCHs distorcem o mercado e podem aumentar o custo da energia elétrica.

Na B3, a empolgação valorizou as ações da Eletrobras em 20% nas duas semanas de intensas negociações que antecederam a aprovação da MP na Câmara.

“Um projeto que só tem vantagens. O texto do deputado Elmar Nascimento é também o texto do governo”, disse o líder de Bolsonaro na Câmara, Ricardo Barros (PP/PR).

Barros justificou que a contratação de termelétricas será benéfica para sustentar o sistema elétrico durante a crise hidrológica. A estiagem nos reservatório das hidrelétricas é a pior em mais de 90 anos e deve perdurar, pelo menos, ao longo de 2022.

Privatização em troca do desenvolvimento no interior do país

A estratégia bem-sucedida de Elmar garantiu amplo apoio da direita e do centro. Os 313 votos favoráveis representaram a votação majoritária de todos os partidos, com exceção da oposição de esquerda (PT, PSOL, PCdoB, PDT e PSB), do PV e do Novo.

Inclusive, os liberais do partido Novo ficaram quase isolados na defesa da MP original do próprio governo. Favoráveis à privatização, recorreram até mesmo a destaques e emendas para evitar a votação.

“O texto apresentado pelo relator, [e] ressaltamos que sim, melhorou em relação ao [substitutivo] original, mas ainda assim é muito ruim. Apresenta retrocessos e inclui itens que somos totalmente contra. Inclusive, itens que conseguimos evitar no PL do Gás, no Novo Marco Legal do Gás”, argumentou Paulo Ganime (Novo/RJ).

“Por isso, o Novo orienta “sim” à retirada de pauta”, afirmou em uma das tentativas frustradas de segurar o substitutivo da MP.

Destaques da MP

Contratação de usinas termoelétricas a gás natural, no total de 6 GW, sendo 5 GW no Norte e Centro-Oeste; e 1 GW no Nordeste. Inclui na lei critérios que normalmente são definidos pelo governo – a modalidade de contração, por leilão de reserva de capacidade, por exemplo.

  • Se bem-sucedida, a política provocará investimentos em novas regiões, estimulando até mesmo a construção de “gasodutos estruturantes”. A crítica dos liberais – incluindo o governo – é quanto ao risco de forçar a viabilização de projetos que não seriam competitivos sem esse estímulo adicional.
  • Os freios: usinas deverão respeitar o preço-teto do leilão A-6 (energia nova) de 2019, de R$ 292 por MWh, atualizado até a realização da nova concorrência.

Prorrogação dos contratos do Proinfa por 20 anos. O programa foi criado em 2004 para estimular as energias renováveis (PCHs, biomassa e eólicas). É bancado pela CDE, a conta do setor elétrico paga pelos consumidores que financiam as políticas setoriais; o fundo dos subsidio, que o governo vem passo-a-passo tentando reduzir.

  • Inclui a antecipação de cotas para as PCHs. Até a fonte atingir 2 GW em leilões regulados para o mercado cativo, metade da demanda declarada das distribuidoras será atendida por essas PCHs; depois, o piso cai para 40% nos leilões realizados até 2026.
  • Há também critérios locacionais. Preferência para estados de acordo com a potência habilitada nos leilões, até o limite de 25% da capacidade. Na prática, fica assim: as regiões de maior potencial são privilegiadas, mas o teto de 25% impede que um estado concentre todos os projetos. Benefício especialmente para Centro-Oeste e para o Paraná.
  • Os freios: novamente, deverá respeitar o preço-teto do A-6 de 2019, de R$ 285 por MWh, a ser atualizado. Vale para as usinas beneficiadas pelo Proinfa, que contará também com a mudança no indexador de reajuste dos valores repassados para o programa, do IGPM para o IPCA. O IGPM, mais sensível ao câmbio, disparou de 2020 para cá.

Redução de danos

Além desse pacote, Elmar elevou a distribuição de recursos bilionários para projetos em bacias hidrográficas nas áreas de influência da Eletrobras, cortou a polêmica gestão de recursos pela Codevasf e eliminou de sua proposta final os artigos que colocavam em xeque a capitalização, ponto de inflexão para o governo.

Entre segunda e a votação na quarta (19), o relator cedeu em outros aspectos.

Na MP aprovada, a contratação das térmicas deixou de ser uma condição para a capitalização, dando mais flexibilidade para a programação dos leilões. Foi uma “redução de danos”, articulada pelo governo e pela Eletrobras.

Na prática, o governo ganhou mais tempo para a contratação das usinas, incialmente prevista para ocorrer entre novembro e dezembro deste ano. Como o texto ainda prevê a entrada em operação de ao menos 1GW em 2026, outros 2 GW em 2027 e mais 2 GW em 2028, para chegar aos 5 GW no Norte e Centro-Oeste, essa flexibilidade é limitada.

“As PCHs vão beneficiar milhares de pequenas centrais hidrelétricas, que representam o mesmo tamanho de uma Itaipu, do Paraná, do Tocantins, de Goiás, do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul”, citou Elmar.

No fim das contas, o relator partiu de um projeto que ameaçava a capitalização e recuou, ao mesmo tempo em que garantiu a força política do texto, estendendo os ganhos de todo o processo que envolve a privatização para as bases eleitorais de políticos de várias regiões do país.

Como por exemplo, Minas Gerais. O líder do PSDB, Rodrigo Castro (PSDB/MG), e outros deputados da bancada mineira atuaram pela aprovação da MP, em resposta à inclusão do estado no programa de revitalização das bacias hidrográficas, pela presença de Furnas.

A MP prevê como condição para a capitalização uma nova concessão de 30 anos para a UHE Mascarenhas de Moraes, em terras mineiras.

Políticos ouvidos pela epbr nos dias que antecederam a votação concordam em dois pontos: o desafio para a provação estava na base do governo e no apetite do “centrão”, já que a oposição não teria forças para segurar a MP; e que as “ameaças” à capitalização foram o bode na sala, no jargão de Brasília.

Tudo isso foi feito com a antecipação dos textos para associações setoriais, consultorias, imprensa e agentes do governo, colocando pressão por um acordo. A MP caduca em 22 de junho e pode ser alterada no Senado Federal. O governo quer capitalizar a Eletrobras até fevereiro, mas ainda precisa do aval do TCU e concluir os estudos na Eletrobras e no BNDES.

Fontes do MME e da Eletrobras minimizaram o impacto do apoio às térmicas. O estímulo ao mercado de gás foi negociado com o próprio Elmar Nascimento quando ele apresentou um substitutivo à Lei do Gás em 2020, na Câmara. O projeto chegou a ganhar alguma força no entre legendas de centro, mas acabou retirado pelo próprio autor.

Na época, ficou acertado que a contratação das térmicas se daria no planejamento dos leilões, por medidas infralegais. O MME retirou os limites de inflexibilidade para permitir a geração na base; e pretendia, de fato, realizar leilões que priorizassem a fonte.

A garantia de contração em determinadas regiões do país, contudo, nunca foi prometida. Tampouco determinar previamente um patamar mínimo de inflexibilidade. A posição oficial é que antes qualquer coisa, os projetos precisariam ser competitivos.

Na votação da Lei do Gás, Elmar ouviu de representantes do MME que o tema não caberia no novo marco do gás, mas sim no planejamento do setor elétrico. Poucos meses depois, sua aliança com Arthur Lira (PP/AL) garantiu a relatoria da MP da Eletrobras.

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Esquerda, centro e liberais ombro a ombro

Principais motivos de divergência, as termoelétricas levaram a uma junção improvável dos partidos da oposição com MDB, Novo e, até certo ponto, o Podemos.

A presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann (RS), criticou contratação obrigatória das térmicas junto com o líder do Novo, Vinicius Poit (SP).

O PSOL abriu o caminho para as acusações de que o texto beneficiaria o empresário Carlos Suarez, fundador da OAS. A acusação de que “jabutis” foram incluídos por “interesses escusos” se espalhou no plenário, com apoio de partidos considerados “independentes” da base aliada, como o MDB.

“O Novo é o mesmo, vai ser o mesmo, defendendo o interesse dos brasileiros e não o interesse escuso, que não está claro, para defender interesses de empresário. E é disso que nós estamos falando aqui”, acusou Ganime.

Da parte do PSOL, o objetivo mesmo era derrubar a privatização.

“Estamos sacudindo a árvore para que caiam os jabutis. Somos contrários a qualquer texto”, resumiu Marcelo Freixo (PSOL/RJ), líder da minoria.

As referências à Carlos Suarez são motivadas pela participação do empresário no mercado de gás.

Suarez atua com empresas detentoras de licenças ou participações em projetos que podem se beneficiar dos leilões locacionais, como os gasodutos traçados entre São Paulo e Brasília (Brasil Central); os Centro Norte e Meio Norte (GO-TO-MA); e o Gasoduto do Pará (MA-PA).

Elmar negou quaisquer favorecimentos. “Eu vou negar que o conheço? Ou que ele é um empresário do setor? Vou negar que ele tem interesse, como tantos outros? Agora, nunca recebi um benefício sequer dele, nem de quem quer que seja”, disse.

E mirou nas alianças inusitadas. “Os deputados do PT podem estar sendo levados a engano, porque 90% das emendas acatadas foram as deles. O retorno ao texto original vai na linha do que defende o Novo. Eu já vi de tudo nessa casa, agora, votar contra as próprias emendas?”

“Se há um partido que manteve a coerência nesta casa foi o Novo, que é o extremo defensor da Faria Lima, dos interesses do mercado financeiro. Esse texto propõe a contratação de 6 mil GW de térmicas a gás para substituir o combustível [mais caro]. Sabe quanto custa o megawatt-hora do óleo combustível? Vai tirar dinheiro do rico, porque agora vai ter que cobrar 300 reais”.

Os “300 reais”, arredondados, são o preço-teto do leilão A-6 de 2019 para a contratação das térmicas.

No DEM e MDB, defesa do projeto de Temer

“É preciso adiar a discussão, volto a repetir, porque temos que resgatar o texto enviado pelo governo. Foi um texto trabalhado desde o governo do presidente Michel Temer, o caminho para a desestatização da Eletrobras no melhor modelo, por meio de capitalização, para fortalecer a Eletrobras”, defendeu o líder do MDB, Isnaldo Bulhões (AL).

No fim, 24 dos 30 votos do MDB, incluindo o de Bulhões, foram favoráveis à MP de Elmar.

A oposição do MDB foi articulada pelo ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM/RJ). Procurado por representantes de indústrias, o deputado acionou o presidente do partido, Baleia Rossi (MDB/SP), para tentar derrubar a contratação das térmicas.

Em parte, é pessoal. Elmar decidiu apoiar Lira na disputa pela eleição para presidente da Câmara no final de 2020, enquanto Maia articulava a favor de Baleia Rossi. A decisão de Elmar marcou o racha no DEM, que enfraqueceu a campanha de Baleia.

Adicionalmente à situação, Isnaldo Bulhões é apadrinhado político de Renan Calheiros (MDB), grupo opositor ao de Lira em Alagoas.

A estratégia na Câmara teve similaridades com outros eventos da política energética nacional. Quando se trata de recursos de ativos da União, prevalece o entendimento que todo o país deve ser contemplado. Foi assim no governo de Dilma Rousseff, com a redistribuição dos royalties do petróleo (barrada no STF).

E depois, com Temer e Bolsonaro, na negociação entre 2018 e 2019 pelo rateio do bônus da cessão onerosa, que contemplou todos os estados e viabilizou o leilão do maior campo do país. No caso, Búzios, que terminou 90% nas mãos da Petrobras.

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