Dentre as medidas desenhadas para a estruturação do “Novo Mercado de Gás”, em 2019, o Ministério da Economia anunciou uma redução no preço do gás natural de até 40%.
Um conjunto de iniciativas lastreavam esta redução e, dentre elas, se destacavam o Termo de Compromisso de Cessação (TCC) celebrado entre o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e a Petrobras em julho daquele ano, aliado a iniciativas legais, como o projeto da denominada Nova Lei do Gás (aprovado pelo Congresso Nacional em 2021 – Lei nº 14.134), e medidas infralegais como a publicação da Resolução nº 16/2019, do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), que estabeleceu diretrizes e aperfeiçoamentos de políticas energéticas voltadas à promoção da livre concorrência no mercado de gás natural.
A expectativa se baseava nas boas práticas da experiência internacional, cujas premissas para transição ao cenário competitivo no setor de gás natural incluem:
(i) concorrência, diversidade e liquidez na oferta e aquisição de gás;
(ii) acesso transparente, eficiente e isonômico à rede de transporte, distribuição e às demais essential facilities (terminal de importação, escoamento e processamento);
(iii) desverticalização, boa regulação e independência nos elos monopolistas (transporte e distribuição);
(iv) medidas de enforcement contra práticas anticompetitivas e oportunistas pelos agentes com posição dominante.
O TCC firmado com o CADE instrumentalizou medidas importantes para instituir esse ambiente competitivo. Por meio dele, a Petrobras se comprometeu a:
(i) desverticalizar sua atuação nos elos monopolistas (transporte e distribuição);
(ii) arrendar o terminal de regaseificação/importação da Bahia (TR-BA);
(iii) negociar de boa-fé e de forma não discriminatória o acesso às suas essential facilities;
(iv) renunciar à exclusividade da capacidade de transporte;
(v) não contratar novos volumes de gás de outros produtores, exceto em situações específicas e sem cláusulas restritivas.
No entanto, ao contrário do esperado, a transição para um cenário concorrencial, com aumento da oferta e redução de ineficiências, segue em um ritmo decepcionantemente lento, marcado por condutas que geram insegurança, falta de transparência e que são contrárias ao compromisso pró-competitivo consignado no TCC, requerendo uma necessária e célere atuação do CADE.
Para serem eficientes, as medidas acordadas devem ser coordenadas e tempestivamente cumpridas. E, muito embora o cumprimento do acordo seja monitorado por um truste independente, o que se observa é que o lamentável histórico de práticas anticoncorrenciais por parte do agente incumbente verticalizado continua criando dificuldades, inseguranças e barreiras à entrada de novos agentes e à previsibilidade de um ambiente competitivo.
É sabido que a doutrina e a experiência indicam que a atuação das autoridades antitruste em mercados em processo de abertura deve dedicar atenção às condutas do agente incumbente, especialmente na presença de monopólios naturais e de fato, com controle de essential facilities e integração vertical aos mercados potencialmente competitivos – que é o caso do setor de gás natural brasileiro.
Ou seja, no caso de condutas potencialmente abusivas e restritivas do agente monopolista, ao invés de priorizar justificativas baseadas em argumentos de eficiência econômica, a análise antitruste deve levar em conta os efeitos anticompetitivos e exploratórios dessas práticas, que muitas vezes incluem o fechamento de mercado, aumento de custos de rivais, de transação e mesmo barreiras à entrada de novos agentes.
É o que se espera do papel do TCC com relação às práticas da Petrobras. Passados mais de dois anos desde a celebração do acordo, a conduta da estatal é marcada por reclamações dos agentes de mercado e do próprio truste que monitora o cumprimento dos compromissos pró-competitivos.
Destaca-se que, até o momento, não há sequer um modelo de negociação de acesso a essential facilities – tanto assim que o Tribunal de Contas da União (TCU) já apontou que a Petrobras vem adotando práticas discriminatórias, fato que o CADE ainda vem apurando, desde o primeiro relatório do truste.
Também o acesso ao transporte ainda não foi seguramente viabilizado, principalmente pela ausência de informações a respeito da capacidade ocupada da Petrobras.
Além disso, o modelo de comercialização adotado pela Petrobras vem demonstrando a capacidade da estatal de continuar a fechar mercado e abusar de sua posição de monopolista.
Ainda em 2019, em meio a dificuldades de alternativas de suprimento, as distribuidoras locais de gás natural tiveram que negociar contratos com a Petrobras que estabeleciam restrições aos consumidores que pretendam migrar ao mercado livre contratando com fornecedores/comercializadores que não a Petrobras.
Agora, com o término de parte desses contratos, em um cenário em que os consumidores estão se planejando para migrarem ao mercado livre e onde as distribuidoras buscam diversificar seus fornecedores, noticia-se que a Petrobras, se aproveitando da existência de raríssimas opções de fornecedores que não a própria empresa (o que se deve especialmente à dificuldade de acesso às essential facilities e à rede de transporte), desenhou um modelo de comercialização que transfere os custos e riscos de sua operação aos consumidores – especialmente riscos associados ao atendimento à demanda flexível das térmicas e flutuação dos preços internacionais do GNL.
Ao mesmo tempo, obtém retorno supracompetitivo e impede os demais produtores/comercializadores de acessarem parcela relevante do mercado ao criar uma política de “incentivos” aos consumidores atrelados aos contratos de médio e longo prazo e com elevadas barreiras e custos de migração para o mercado livre.
Tal estratégia fere frontalmente os objetivos e premissas do TCC, que inclusive inclui a hipótese de adoção de medidas além daquelas expressamente consignadas no acordo. O próprio CADE já impôs obrigações à Petrobras que não estavam expressamente previstas no TCC.
É imprescindível e urgente que o CADE determine que a Petrobras:
(i) estruture um modelo de acesso às suas essential facilities;
(ii) publicize os termos da contratação de sua capacidade de transporte;
(iii) se abstenha de impor cláusulas e condições na comercialização de gás natural que impeçam a migração dos consumidores ao mercado livre e/ou os penalize caso não celebrem contrato de longo prazo com a empresa, como a imposição de preços e indexadores que não representam a mesma dinâmica comercial e de risco.
A adoção de tais medidas não implica em impor prejuízos à Petrobras ou ainda benefícios aos seus concorrentes (free rider), mas em simplesmente observar e fazer cumprir as previsões de acesso indiscriminado à infraestrutura detida pela empresa e de remoção de barreiras e entraves, previstas na Resolução nº 16/21 do CNPE, nas sugestões do Comitê de Promoção da Concorrência no Mercado de Gás Natural e na Lei 14.134/2021, normas que serviram como fundamento e objetivo para o próprio TCC.
Por fim, mas não menos importante, vale destacar que a aquisição, pela Compass, do controle acionário da Gaspetro, uma holding, de propriedade da Petrobras, com participação em dezenove companhias distribuidoras locais de gás canalizado, vem trazer um agravante para a situação.
A alienação da participação societária na Gaspetro decorre de compromisso assumido pela Petrobras no âmbito do TCC e, muito embora Petrobras e Compass aleguem que a operação não gera nenhuma preocupação concorrencial, em um cenário de monopólio de várias cadeias de gás pela Petrobras, a operação não só agrava os diversos problemas concorrenciais no setor de gás natural como gerará efeitos nocivos ao ambiente competitivo instituído pelo Novo Mercado de Gás. Assim, inviabilizando a concorrência nos elos potencialmente competitivos e a independência da atividade monopolista de distribuição de gás canalizado.
Importante lembrar que a Cláusula de Independência prevista no TCC (Cláusula Quinta), ao tratar dos “Compradores dos Ativos Desinvestidos”, é clara ao exigir que o comprador ostente “independência com relação aos agentes que compõem os demais elos da cadeia de gás natural, não possuindo, direta ou indiretamente, participação societária destes agentes”.
A previsão do TCC requer independência dos compradores dos ativos desinvestidos em razão das diretrizes do Novo Mercado de Gás a respeito da independência e imparcialidades dos agentes que controlam os monopólios naturais: transporte e distribuição.
Ou seja, a independência do comprador da Gaspetro é garantia imprescindível para efetivar as diretrizes e objetivos concorrenciais do Novo Mercado de Gás, pois o controle da Gaspetro por comprador que tenha atuação em outros elos do setor, como sabidamente é o caso da Compass, agrava os problemas concorrenciais que o TCC buscou atacar.
Fica a sensação de que estamos saindo das mãos de um monopolista estatal para as mãos de um monopolista privado.
Aline Bagesteiro é advogada pós-graduada em Gerenciamento de Projetos pela Fundação Getúlio Vargas. Diretora Jurídica e de Gestão da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres – ABRACE.
Felipe Fernandes Reis é advogado, sócio coordenador da equipe de Direito Econômico e Concorrencial do Malard Advogados Associados. Membro-Consultor das Comissões Especiais de Direito Econômico e de Energia da OAB/Federal; e membro das Comissões de Defesa da Concorrência e de Relações Governamentais e Institucionais da OAB/DF. Associado Internacional da American Bar Association, nos comitês de Antitrust Law e Environment, Energy and Resource Law.