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Brasil precisa viabilizar o financiamento para o hidrogênio verde 

Pioneirismo do país dependerá de soluções para viabilizar economicamente projetos de grande escala, escrevem Pablo Sorj e Natalia De Santis

Brasil precisa viabilizar o financiamento para o hidrogênio verde, um dos principais protagonistas na transição energética. Na imagem: Senadores e deputados durante sessão do Congresso (Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado)
Senadores e deputados durante sessão do Congresso (Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado)

Projetos de hidrogênio verde se tornaram um dos principais protagonistas na transição energética, e uma das promessas para que os países atinjam as metas do Acordo de Paris e neutralidade das emissões de carbono até 2050.

O desenvolvimento desses projetos, no entanto, demanda um volume substancial de capital, uma vez que são projetos integrados, com uma planta de geração de energia renovável, uma planta de eletrólise, além de infraestruturas de armazenamento, transporte e, no caso de exportação ou de transporte por longas distâncias, plantas de liquefação.

Dessa complexidade nasce um dos principais desafios ao desenvolvimento e implantação de projetos de hidrogênio verde no Brasil: assegurar a regulação adequada do setor e a disponibilidade de incentivos governamentais e fontes de financiamentos que enderecem as peculiaridades desse tipo de projeto, permitindo um retorno adequado do capital investido.

Atualmente, não há um mercado consolidado, local ou internacional, para compra e venda de hidrogênio e seus derivados.

A maioria dos consumidores finais dessa cadeia não estão dispostos a celebrar contratos de longo prazo ou pagar um “prêmio” alto pelo produto de forma a viabilizar o investimento necessário para o desenvolvimento inicial desses projetos.

A solução encontrada por diversos países foi oferecer subsídios governamentais – em alguns casos por meio de financiamentos subsidiados e, em outros, por incentivos fiscais. Caso o Brasil queira ser pioneiro no setor de hidrogênio verde em grande escala, precisará encontrar soluções para viabilizar economicamente tais projetos.

A regulação do setor tem apresentado avanços nos últimos meses, mas ainda há um caminho pela frente. A Câmara dos Deputados aprovou, no final de novembro, o projeto de lei 2308/2023, com o objetivo de estabelecer o arcabouço legal do hidrogênio de baixa emissão de carbono.

O projeto, que agora aguarda apreciação pelo Senado Federal, institui a certificação voluntária de hidrogênio e concede incentivos federais tributários por meio do Regime Especial de Incentivos para a Produção de Hidrogênio de Baixo Carbono (Rehidro), que visa aplicar os mesmos benefícios fiscais existentes no Regime Especial de Incentivos ao Desenvolvimento de Infraestrutura (Reidi).

O texto, no entanto, sofreu alterações que excluíram o pacote de subsídios específicos à produção de hidrogênio de baixo carbono, por meio da desoneração de investimentos e descontos na tarifa de energia renovável utilizada na produção.

Um marco regulatório bem definido e que dê segurança aos financiadores é essencial para que um projeto de hidrogênio verde seja financiado na modalidade de project finance, ou seja, para que os credores assumam o risco do projeto e não o do acionista.

Uma vez que os projetos se tornem viáveis economicamente e o marco regulatório seja aprovado, esperamos ver muitos projetos de hidrogênio verde se financiando na modalidade project finance. Alguns desafios, contudo, comuns em projetos complexos e integrados, precisarão ser endereçados.

O risco de interface

O primeiro deles é o risco de interface. A construção de uma planta de produção de hidrogênio verde é composta por diferentes plantas (produção de energia limpa, eletrólise, liquefação, armazenamento e transporte). Na fase de construção, portanto, é esperado que diferentes empreiteiros sejam engajados, cada um com a especialização necessária para assumir cada componente do projeto.

Com a contratação de diferentes empreiteiros sob múltiplos contratos de construção e engenharia, dificuldades técnicas poderão impactar a construção caso não seja realizada uma amarração cuidadosa da interconexão entre os agentes envolvidos, por meio de arranjos contratuais e gestão dos agentes.

Um contrato guarda-chuva e uma matriz de riscos bem desenhada para fins de gestão dos diferentes empreiteiros, seja por meio de um terceiro especializado ou pela própria entidade específica desenvolvedora do projeto, é recomendado para mitigar os riscos na fase de construção.

Isso porque projetos de hidrogênio verde apresentam peculiaridades que dificultam a previsibilidade de todos os riscos envolvidos (seja em razão da escala dos projetos ou da tecnologia ainda a ser testada, para nomear dois entre os vários fatores).

Admitindo a possibilidade de potenciais atrasos na entrada em operação em razão de riscos pouco previsíveis, os financiadores devem exigir um grau maior de flexibilidade nos contratos de compra e venda de hidrogênio e derivados quanto a atrasos na entrada em operação comercial do que o usualmente visto em outros projetos de infraestrutura já testados.

Direitos de uso

O segundo desafio a ser enfrentado diz respeito aos direitos de uso e quiet enjoyment. Na medida em que se ampliam os elementos que compõem o projeto (diferentes entidades, contratados, unidades produtoras) é necessário pré-estabelecer adequadamente o uso da planta pelas diferentes partes envolvidas.

No Brasil, é esperado que projetos de hidrogênio sejam desenvolvidos nas premissas que comportem também outros projetos de infraestrutura, como portos multipropósitos ou outras áreas que atraiam esses projetos considerando sua proximidade com plantas de produção de energia limpa e dutos de transporte ou outras formas de escoamento.

Seja a entidade produtora de hidrogênio dona ou arrendatária de parte das premissas onde será instalada a planta, é importante estabelecer por meio de um arcabouço contratual os direitos das partes envolvidas em utilizar as premissas sem causar perturbação ou dificuldades operacionais para as demais partes que atuam na área.

Tais arranjos contratuais para fins de garantir a utilização pacífica das premissas onde o projeto será localizado englobam, no mínimo, contratos referentes aos direitos de uso da superfície, servidões, direitos de passagem e acesso de funcionários e terceiros contratados.

Espera-se que bancos de desenvolvimento locais, como BNDES e BNB, assumam o papel principal na fomentação dos projetos de hidrogênio no Brasil, assim como atuaram e atuam no desenvolvimento de diversas outras áreas de infraestrutura estratégicas do país.

Em razão da escala, riscos associados e volumes necessários para desenvolvimento desses projetos, é esperado, contudo, que múltiplas fontes de financiamento sejam empregadas para viabilizar a primeira geração de projetos de hidrogênio no Brasil.

Na modalidade de blended financing (ou financiamento por fontes múltiplas), outras fontes de endividamento deverão fazer parte da composição dos recursos necessários: agências multilaterais, agências de crédito à exportação, mercado de capitais local e internacional, e bancos comerciais provendo garantias. Tais instituições possuem diferentes apetites ao risco, mas são potencialmente complementares na composição de uma estrutura de endividamento para o projeto.

Na medida em que cada unidade do projeto (geração, hidrólise, armazenagem etc.) conte com fontes de financiamento provenientes de diferentes credores, será necessário que os credores celebrem cartas de quiet enjoyment, por meio das quais eles devem concordam em não afetar os contratos e a viabilidade dos demais projetos em caso de execução das garantias dos financiamentos.

Risco em cascata

Outra preocupação relevante dos financiadores é o risco em cascata (project-on-project risk) decorrente desses projetos, em especial o risco associado à conclusão técnica do projeto.

Dada a complexidade e a larga escala dos projetos de hidrogênio prospectivos (que agregadamente já somam mais de US$ 30 bilhões em estimativas para hidrogênio de baixa emissão de carbono de acordo com os registros do Ministério de Minas e Energia), bem como os riscos associados na utilização de novas tecnologias, os critérios para atingimento da conclusão técnica serão dissecados por potenciais financiadores, que poderão exigir garantias adicionais na fase de construção do projeto.

Há ainda um risco adicional a ser considerado referente ao risco em cascata da conclusão técnica de cada um dos componentes do projeto – ou seja, a entrada em operação do projeto dependerá diretamente de outros projetos, incluindo entrada em operação da planta de energia limpa, dutos de transporte de hidrogênio, frotas marítimas especializadas e instalações de recepção e armazenamento do importador. Um problema enfrentado por uma das plantas do projeto provavelmente impactará as demais plantas.

Os projetos certamente terão infraestruturas compartilhadas e um dos pontos de atenção será demonstrar aos diferentes credores que as unidades podem operar de maneira independente e que eventuais sinistros ou problemas serão mitigados de forma integrada.

Nos últimos anos, os financiamentos na modalidade project finance no Brasil ficaram cada vez mais complexos e parecidos com o padrão internacional. Financiadores, incluindo o BNDES, buscaram estruturar projetos reduzindo as garantias dos acionistas e se baseando cada vez mais na capacidade dos contratos do projeto de viabilizar a construção e a cobertura da dívida.

Nesse sentido, os projetos de hidrogênio chegam em boa hora e ajudarão não apenas o cenário ambiental, mas também a avançar mais em uma agenda positiva para o financiamento de projetos no Brasil.

Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.

Pablo Sorj é sócio do Mattos Filho, especialista em Project Finance.

Natalia De Santis é advogada do Mattos Filho, especialista em Project Finance.