Bateria d’água: uma solução para atendimento à potência do SIN

Artigo por Flávia Silveira, engenheira química (UFRJ) e mestre em Metrologia com ênfase em Smart Grid (PUC-Rio)

UHE Tucuruí / Foto: EBC
UHE Tucuruí / Foto: EBC

Os sistemas elétricos, no Brasil e no mundo, estão passando por profunda transformação, grande parte em decorrência da crescente participação das fontes renováveis não controláveis e de limitada previsibilidade, sobretudo eólica e solar.

A tendência é de participação cada vez maior dessas fontes, não só porque elas têm se mostrado economicamente mais competitivas em relação a outras fontes, mas principalmente impulsionadas por necessárias e desafiadoras metas globais de mitigação das mudanças climáticas e de desenvolvimento sustentável, que tem restringido a operação de usinas convencionais de combustíveis fósseis.

Mais: Aumento de 50% na bandeira tarifária da conta de luz pode durar até 2022

No futuro, veículos elétricos, geração distribuída, microrredes, redes inteligentes e outras tecnologias emergentes podem afetar ainda mais as operações do sistema elétrico.

Mais especificamente no Brasil, com redução da predominância de usinas hidrelétricas com reservatórios de acumulação e ampliação relevante da participação de fontes de geração variáveis e não controláveis, o Sistema Interligado Nacional (SIN) vem demandando serviços adicionais de flexibilidade e capacidade de suprimento de ponta que permitam resposta rápida a variações instantâneas da carga e da demanda.

O Brasil está enfrentando nesse período seco de 2021 uma grave crise hídrica, comprometendo os reservatórios das hidrelétricas, o que aponta para riscos de não suprimento de energia para atender a demanda de pico.

Depois de mais de um ano de pandemia da COVID 19, uma retomada das atividades econômicas, mesmo que limitada, traz o risco de falta de capacidade sistêmica em algumas regiões do país para manter estável e contínua a operação dos serviços.

Nesse sentido, para atender a necessidade de potência requerida pelo SIN, em 28 de maio de 2021 o governo emitiu o Decreto 10.770, que regulamenta a contratação de reserva de capacidade, sendo o primeiro leilão previsto para dezembro.

Diante desse contexto e no cenário de transição energética, os sistemas de armazenamento serão cada vez mais fundamentais para manter o equilíbrio entre fornecimento e demanda elétrica, absorvendo e liberando energia quando necessário e fornecendo serviços ancilares [1] que ajudam a manter a segurança, confiabilidade e estabilidade da rede.

Dentre as tecnologias de armazenamento, as mais utilizadas são as usinas hidrelétricas reversíveis, que representam 94% da potência total instalada e 99% da capacidade de armazenamento de energia no mundo [2].

Basicamente uma Usina Hidrelétrica Reversível (UHR) consiste no bombeamento e liberação de água entre dois reservatórios em diferentes elevações para armazenar água e gerar eletricidade.

Quando a demanda por eletricidade é baixa, a UHR consome energia renovável de baixo custo para bombear água do reservatório inferior para o superior, com a finalidade de armazenar energia.

Quando a demanda por eletricidade é alta, a UHR libera a água armazenada no reservatório superior, produzindo eletricidade.

As tecnologias mais recentes permitem alterar rapidamente entre bombear e gerar energia, reagindo a mudanças repentinas de oferta e demanda.

As UHRs apresentam vantagens sobre outras formas de armazenamento para alta capacidade: longa vida útil, sustentabilidade ambiental e larga escala, armazenando grandes quantidades de energia e potência imediatamente disponíveis.

No entanto, as UHRs tradicionais de circuito aberto (conectadas a um rio ou curso de água) são empreendimentos com elevado custo de capital inicial, longos prazos de construção e potenciais impactos ambientais, pois podem interferir no regime de outros usos de água.

Uma opção ainda pouco estudada no Brasil são as UHRs de circuito fechado, aquelas que não necessariamente precisam estar continuamente conectadas a um rio ou curso de água regular, denominadas Baterias d’Água (BDAs).

Nesse sistema de armazenamento, a água é captada e armazenada em um circuito fechado com dois reservatórios, um superior e outro inferior, produzindo energia quando liberada em queda livre do reservatório superior para o inferior e sendo novamente preparada para produzir energia através de bombeamento do reservatório inferior para o superior durante as horas de folga e pouca utilização de energia do sistema, por exemplo, durante a madrugada.

As BDAs têm pouco impacto sobre os recursos hídricos, os quais são basicamente relacionados ao enchimento inicial dos reservatórios e reposição de perdas por evaporação e infiltração.

Elas são usinas não poluentes se abastecidas com energia de fontes renováveis e fazem uso do bem público de maneira muito diferente e em menor escala que as demais usinas hidráulicas destinadas a produção de energia.

O uso da água é também significativamente menor se comparado ao uso de termelétricas de potência ou capacidade equivalentes. Por esse motivo, os prazos de licenciamento tendem a ser mais rápidos.

Esses empreendimentos têm prazos mais curtos de implementação (3 a 5 anos), menores custos de construção e podem ser construídos nas proximidades dos centros de carga.

A escolha do local de implantação e sobretudo as características específicas de projeto e desenho de engenharia de uma BDA são elementos fundamentais, fazendo sentido que a prospecção e licenciamento sejam feitos pelos interessados para que o empreendimento se viabilize economicamente.

As BDAs não concorrem com os serviços hoje prestados pelas usinas hidrelétricas do SIN, porém prestam serviço de armazenamento de energia, e oferecem suporte a vários aspectos das operações do sistema de energia [3]:

  • Integração de fontes renováveis (armazena geração solar e eólica em excesso e evita corte de geração dessas usinas)
  • Flexibilidade operativa com rápida despachabilidade (rampa rápida) ou ajustes às variações da carga e demanda
  • Benefícios regionais de atendimento de ponta, mesmo em situações de escassez hidrológica (circuito de fluxo da água fechado)
  • Aumento da confiabilidade da rede
  • Contribuição para regulação de frequência/tensão
  • Black start (permite que o sistema seja restaurado em caso de colapso, sem utilizar energia da rede)
  • Otimização das necessidades de transmissão e distribuição.

[sc name=”recircula” ]

As BDAs consomem mais energia que produzem, não sendo, portanto, um ativo de geração puro, então seu principal benefício não está na quantidade de energia gerada, mas sim em sua capacidade de armazenamento de energia, resposta rápida aos requisitos da rede e de prover serviços ancilares, apoiando a integração de energia renovável na rede elétrica.

Por esse motivo, estes empreendimentos devem ser caracterizados como “outras fontes alternativas” no âmbito da Resolução Normativa ANEEL no 876/2020, a qual estabelece os requisitos e procedimentos necessários à obtenção de outorga de autorização para exploração de geração eólica, fotovoltaica, termelétrica e outras fontes alternativas.

Para estimular o desenvolvimento de projetos de BDAs no Brasil é preciso endereçar adequadamente as barreiras à avaliação apropriada desses projetos, provendo os sinais de mercado necessários para que esses projetos sejam desenvolvidos e adequada alocação de riscos, reconhecendo seus benefícios e serviços por ele oferecidos.

Os sistemas de armazenamento ganham competividade quando se leva em consideração seus serviços prestados ao sistema elétrico como um todo.

O modelo de remuneração somente baseado na arbitragem de preços não justifica os investimentos na tecnologia de BDA, sendo necessárias outras fontes de remuneração como fornecimento de serviços ancilares e serviços de capacidade.

O armazenamento de energia é ferramenta fundamental para enfrentar o desafio de agregar energias renováveis intermitentes, mantendo a confiabilidade da rede.

As BDAs possuem tecnologia comprovada e confiável para armazenar grandes quantidades de energia, fornecendo estabilidade e reforço de capacidade despachável ao sistema.

Sua disponibilidade é constante ao longo do ano (a geração de energia não depende de entrada de água), não são vulneráveis ao custo de combustível e não emitem gases de efeito estufa.

A BDA é uma solução viável técnica e economicamente para atender a flexibilidade que será cada vez mais requerida pelo sistema elétrico brasileiro.

 

[1] Para o adequado fornecimento do serviço de energia elétrica é necessário não só capacidade suficiente e produção da energia, mas também é fundamental a qualidade desta energia. Para manter a qualidade e segurança requerida e assegurar o correto funcionamento do sistema, é necessário uma série de serviços uxiliaries ao de geração de energia, os denominados serviços ancilares.

[2] International Hydropower Association – The world`s water battery: Pumped hydropower storage and the clean energy transition – working paper – Dez/2018

[3] Closed-Loop Pumped Storage Hydropower – CLPSH – International Forum on Pumped Storage Hydropower – Mai/2021

 

Flávia Silveira é engenheira química formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestre em Metrologia com ênfase em Smart Grid pela PUC-Rio. Possui especialização em Economia e Gestão em Energia pela COPPEAD e MBA em Finanças pelo IBMEC. Trabalhou em grandes empresas como Light e Petrobras e tem mais de 20 anos de experiencia em diversas áreas do setor elétrico.

Este artigo representa exclusivamente a opinião da autora, responsável por seu conteúdo.

[sc name=”newsletter” ]