Desde o início do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB), a comercialização de biodiesel é realizada obrigatoriamente por meio de leilões públicos, realizados pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). A Petrobras, detentora de quase a totalidade da capacidade de refino de petróleo no País, é responsável pela ferramenta que operacionaliza os certames. Ademais, atua como intermediária entre produtores de biodiesel e distribuidores de combustíveis, no que se refere às operações de compra e venda, exercendo papel central no atual modelo de comercialização.
O PNPB, baseado nos leilões com a participação da Petrobras, foi fundamental para o desenvolvimento do mercado de biodiesel, que conquistou seu lugar na diversificação da matriz energética brasileira, evitando importações de óleo diesel, contribuindo para a redução das emissões de gases que causam o efeito estufa (GEE) e na transição energética para uma economia de baixo carbono.
Hoje, o país conta com um parque de produção de biodiesel robusto, com capacidade ociosa de 33%, com teor obrigatório de 12% e previsão de alcançar 15% em 2023. Ao longo dos anos, criaram-se as condições estruturais de atendimento do teor de mistura obrigatória, sem a dependência da importação desse biocombustível.
Em que pese a importância dos leilões na história da consolidação do biodiesel no país, a nova estratégia de negócios da Petrobras traz a necessidade de alterações do modelo atual. A Petrobras incluiu em seu projeto de desinvestimentos oito refinarias que deverão ser alienadas até dezembro de 2021, conforme acordo firmado entre a empresa e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Além disso, a companhia expressou o interesse em deixar de atuar na comercialização de biodiesel.
Nesse sentido, o Comitê Técnico Integrado para o Desenvolvimento do Mercado de Combustíveis, demais Derivados de Petróleo e Biocombustíveis (CT-CB), grupo interministerial instituído por meio do Decreto nº 9.928/2019, e o principal instrumento para execução dos trabalhos da iniciativa Abastece Brasil, liderada pelo Ministério de Minas e Energia, priorizou e estudou a comercialização de biodiesel.
O objetivo do trabalho do CT-CB foi avaliar o modelo atual e sua aderência ao novo cenário downstream e ao estágio de desenvolvimento do mercado de biodiesel, propondo aprimoramentos regulatórios e sinalizando as ações necessárias para implementação de um novo modelo.
Foram analisados aspectos regulatórios de cinco hipóteses, os quais não foram exaustivos e não impossibilitam de serem estudadas outras opções pela ANP para o devido tratamento regulatório. O estudo sugeriu um novo modelo baseado em homologação de contratos pela agência em substituição aos leilões públicos.
A conjuntura mostrou a premência de um modelo, mais adequado ao panorama e às necessidades do mercado. Ao se observar a experiência internacional como fonte de aprendizado e inspiração para o Brasil, não foi identificado outro país que empregue a comercialização de biodiesel por meio de leilões públicos.
Mesmo após recentes alterações da Portaria MME nº 311/2018, o setor segue apontando a necessidade de aperfeiçoamentos da regra via leilões públicos. A rigidez inerente ao modelo vigente dificulta o atendimento das demandas correntes do mercado em tempo hábil e incorre em custos para a Administração Pública Federal.
Foram identificados aprimoramentos regulatórios com potenciais resultados positivos para o bem-estar do consumidor, levando a uma proposição que observe tanto o ponto de vista concorrencial como também os prismas da garantia do abastecimento, de proteção dos interesses do consumidor e da política pública de biocombustíveis. Em todo caso, a ANP possui um rito regulatório que inclui instrumentos, como consulta prévia, consulta pública, audiência pública e Análise de Impacto Regulatório (AIR), por meio do qual poderão ser analisadas de forma detalhada opções para o problema regulatório.
O estudo destacou a necessidade de atendimento ao art. 3º da Lei nº 13.033/2014, que estabelece a obrigação do Poder Executivo de garantir a participação prioritária de biodiesel produzido necessariamente a partir de matérias-primas oriundas de agricultura familiar. Atualmente, há uma regra de obrigatoriedade de os distribuidores adquirirem nos leilões públicos o mínimo de 80% de biodiesel oriundo de plantas produtoras detentoras do Selo Combustível Social (SCS), que visa a observância desse dispositivo legal. Foi ponderado que o cenário de homologação prévia de contratos de fornecimento pela ANP não invalida o atendimento ao legal, inclusive por intermédio da manutenção da regra vigente. Por outro lado, o trabalho levantou a hipótese de que a regulamentação do disposto na lei poderia ser realizada de forma mais eficiente do que a atual, recomendando a criação de grupo de trabalho para o desenvolvimento de um estudo dedicado ao tema.
Não foi constatada necessidade de ajustes na estrutura de tributação para implantação de um novo modelo de comercialização baseado em contratos bilaterais homologados pela ANP. De acordo com a Lei nº 11.116/2005, os impostos federais (PIS/PASEP e COFINS) incidem sob o produtor e, portanto, não é prevista a alteração do sujeito passivo na relação tributária. Em relação aos impostos estaduais, tampouco foram observadas exigências de alterações normativas, sendo inclusive o biodiesel previsto no mesmo ato que o etanol, o Convênio ICMS nº 110/2007.Com relação ao monitoramento da qualidade do biodiesel e óleo diesel B, bem como a fiscalização do teor de mistura obrigatório, dentre outros parâmetros, verifica-se que a ANP dispõe de diversos instrumentos para realização dessas atividades, que funcionam de forma independente do modelo de comercialização de combustíveis. Embora não tendo sido identificado óbice à alteração sugerida, a Agência, visando a melhoria regulatória, poderá adotar novas ferramentas ou aperfeiçoar as existentes.
No modelo proposto, não há vedação à importação de biodiesel. Contudo, a opção de manutenção da obrigatoriedade de os distribuidores adquirirem pelo menos 80% de biodiesel de produtores detentores de SCS permite a concorrência de biodiesel importado com a produção nacional no limite de 20% do mercado.
Considerando as diretrizes de boas práticas de governança, previsibilidade, segurança jurídica e regulatória, em caso de mudanças no sistema de comercialização, é imprescindível que haja um período de transição. As adequações do arcabouço regulatório vigente devem ser conduzidas com tempo suficiente para realização das análises de impacto regulatório pertinentes de forma criteriosa, com base num diálogo profícuo e transparente com todos os segmentos da sociedade e em prol do interesse público.
Pelo exposto, recomendou-se que as alterações inerentes ao modelo proposto fossem priorizadas na agenda regulatória da ANP e que seu início ocorresse até 1º de janeiro de 2022, atendidas as premissas de qualidade regulatória e previsibilidade para o setor. Durante o período transição, entendeu-se como mais adequado para a segurança do abastecimento que a comercialização de biodiesel siga ocorrendo por meio dos leilões públicos, consonante ao arcabouço regulatório vigente.
O segmento de downstream no Brasil vive um momento ímpar na sua história. Esse momento de transformação se constituiu como força motriz para a reflexão sobre o atual modelo de comercialização de biodiesel e oportunidade de implementação de melhorias. Um novo modelo de comercialização de biodiesel baseado na livre negociação entre produtores de biodiesel e distribuidores de combustíveis, com a homologação prévia de contratos pela ANP, possibilitará redução de custos de transação e regulatórios, desburocratização, promoção da concorrência e outros incentivos à eficiência com potencial de propiciar ganhos significativos de bem-estar para a sociedade.
Danielle Lanchares Ornelas é coordenadora-geral de Refino, Abastecimento e Infraestrutura do Departamento de Combustíveis Derivados de Petróleo, da Secretaria de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, do Ministério de Minas e Energia. Especialista em Regulação da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). No segmento downstream, atuou na Superintendência de Refino e Processamento de Gás Natural (SRP) e na Superintendência de Biocombustíveis e Qualidade de Produtos (SBQ). Trabalhou nas empresas Prosint e Chemtech. Doutora pelo Programa de Planejamento Energético (PPE) do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós Graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Especialista em Processo Downstream pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Engenheira Química pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Marisa Maia de Barros é diretora do Departamento de Combustíveis Derivados de Petróleo (DCDP) da Secretaria de Petróleo e Gás (SPG) no Ministério de Minas e Energia (MME). Anteriormente, ocupou o cargo de Coordenadora-Geral de Refino, Abastecimento e Infraestrutura no mesmo Departamento. Egressa da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), desenvolveu estudos prospectivos da matriz energética brasileira na Superintendência de Estudos Econômicos (SEE). Trabalhou na Superintendência de Petróleo (SPT), onde realizou estudos técnicos associados à oferta de derivados de petróleo para subsidiar o planejamento energético nacional. Trabalhou nas empresas Refinaria de Petróleos de Manguinhos e Shell Brasil. Doutora pelo Programa de Planejamento Energético (PPE) do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós Graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Engenheira Química pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
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