Energia

Arco-íris, descarbonização e geopolítica no tabuleiro global do hidrogênio sustentável

Importância da pegada de carbono – quantidade de CO2 equivalente por kg de hidrogênio produzido – se sobrepõe à rota tecnológica (ou cor) de produção, escreve Carlos Peixoto

Arco-íris, descarbonização e geopolítica no tabuleiro global do hidrogênio sustentável. Na imagem: Tanque de armazenamento de hidrogênio associado a geração eólica e solar (Foto: Alexander Kirch/Shutterstock)
Riscos climáticos têm levado os países a dedicar pesados investimentos na descarbonização de suas economias (Foto: Alexander Kirch/Shutterstock)

Os séculos XV e XVI viram grande progresso econômico e turbulência política na Europa, quando as monarquias investiam em expansão territorial. Foi uma época de grandes transformações — Humanismo, Reforma Protestante, Revolução Científica e os Grandes Descobrimentos.

Desenvolveu-se enorme poderio naval militar. Havia que conquistar as novas terras, submeter e/ou cooptar as resistências locais e de lá trazer riquezas para alimentar o desenvolvimento econômico, mantendo assim o estilo de vida, a qualquer custo.

Não cabe julgar a História com olhar retrospectivo. Porém é mister reconhecer e evitar erros e exageros que dificultam uma distribuição mais justa das condições de vida digna entre as regiões do planeta.

Já estamos na terceira década do século XXI. A evolução da sociedade humana resultou na criação e manutenção de organismos internacionais de governança que estimulam a cooperação, o compartilhamento dos esforços e benefícios do desenvolvimento econômico e social, a preservação e o uso racional dos recursos naturais e a manutenção da paz, a despeito das tensões entre as diferentes visões de mundo e dos interesses geopolíticos das nações.

Mas como sempre, vivemos um embate de forças entre as regiões detentoras de tecnologia e recursos financeiros e aquelas que ainda dispõem de recursos naturais conversíveis em energia, mas que por questões históricas carecem de poder político na mesma proporção. Tudo isso enquanto vivemos o risco do caos climático.

Às vésperas do G7 2023 Hiroshima Summit, a Agência Internacional de Energia (IEA) emitiu o relatório Towards hydrogen definitions based on their emissions intensity.

Um oportuno alerta em momento de grande alarido internacional que pode resultar num fato consumado em prol do denominado hidrogênio verde (H2V), em detrimento de outras formas de obtenção desse vetor energético que promete livrar-nos das consequências nefastas do aquecimento global.

Graus de sustentabilidade e geopolítica do hidrogênio

A utilização de uma paleta de cores para definir o grau de sustentabilidade das diversas rotas de produção do hidrogênio teve certa importância para ajudar na disseminação de conhecimentos, principalmente junto ao público não especializado.

Convencionou-se chamar de Verde o H2 produzido por eletrólise da água utilizando-se energia elétrica de fonte solar, eólica ou hídrica. Enquanto que Cinza era o H2 produzido pela reforma a vapor do metano (SMR), que logo se tornaria em Azul, na medida da captura e armazenamento do CO2 liberado no processo. Num verdadeiro desfile multicor que teve rosa, branco, negro, marrom, turquesa, amarelo, púrpura e por aí vai.

Porém uma leitura mais apurada da evolução dos fatos nos remete ao relatório da Irena publicado em janeiro de 2022, chamando nossa atenção para as grandes transformações no cenário geopolítico, com os países disputando espaço, exercendo influências e forjando alianças estratégicas, ao tempo em que rapidamente se desenha o novo mapa global da energia.

No final das contas, as nações almejam segurança, desenvolvendo produção própria ou através de acordos nos campos da segurança alimentar, política, energética, etc., mas sobretudo no campo das modernas tecnologias transformadoras do conhecimento e do bem-estar humano.

O aumento da consciência internacional sobre os riscos resultantes da crise climática tem levado os países a dedicar pesados investimentos na descarbonização de suas economias.  Leia-se substituir fontes fósseis que ao serem consumidas liberam na atmosfera os gases do efeito estufa (GEE), que são a causa principal do aquecimento global.

Os países da Europa, por exemplo, não contam com abundância dos recursos naturais necessários à tão urgente transição energética, tais como água, terra, fontes renováveis de energia como solar, eólica, hídrica, biomassa, etc.

São grandes consumidores e naturais importadores de energia. Lembremo-nos de que no passado foram grandes importadores de pedras preciosas e recursos naturais e no período pós-revolução industrial se converteram em ávidos importadores de alimentos e outras commodities, incluindo petróleo e gás natural.

Porém na maioria dos casos não dá para importar eletricidade, sol, vento e água. Daí que o hidrogênio, um vetor energético de grande transversalidade tem sido apontado como a solução.

Essa molécula pode ser obtida por diversas rotas tecnológicas e seu poder energético pode ser aproveitado em quase todas as atividades necessárias ao desenvolvimento humano, indo da produção e processamento de alimentos à produção de aço, cimento, químicos, plásticos, resfriamento e aquecimento de edificações, combustíveis para o transporte aéreo, marítimo e terrestre, etc.

Hoje são produzidas globalmente cerca de 100 milhões de toneladas/ano de hidrogênio, quase que na sua totalidade pela rota SMR sem captura de carbono.

E sua utilização está virtualmente restrita ao refino de petróleo, produção de amônia, sendo que apenas 4% são usados em outros processos na indústria alimentícia e química.

Estima-se que em razão dos investimentos atualmente em curso, chegaremos a uma produção de 500 milhões de toneladas/ano por volta de 2050, com acentuada expansão de sua utilização para fins energéticos e crescente substituição de fontes fósseis (IEA, 2023, 2022, 2021; IRENA, 2022).

Aqui entra a questão da certificação do hidrogênio

Os países consumidores buscam definir não apenas as especificações do hidrogênio que desejam importar, mas sua rota tecnológica de produção. Em alguns casos almejam impor por meio de complexas regras de certificação a origem da energia que será usada na produção do hidrogênio.

Um exemplo disso é o hidrogênio verde, que tem sido definido como aquele gerado por eletrólise com energia elétrica de fonte solar/eólica exclusiva, quer dizer, a usina geradora deve estar conectada diretamente aos eletrolisadores sem passar pela rede de distribuição. Pior, as usinas devem ser novas, ou seja, não podem ter mais de três anos de construção (pelo conceito da adicionalidade).

Ora, para um país como o Brasil, que recentemente alcançou no pico 92% de fontes renováveis em sua matriz elétrica, isso não faz qualquer sentido.

O H2 produzido com eletricidade oriunda da rede elétrica europeia não é sustentável, mas em nosso caso, é sustentável e de baixo carbono, sim. O proprietário europeu de um carro elétrico que carrega sua bateria na rede está fingindo descarbonizar, pois sua eletricidade é maiormente gerada de fonte fóssil.

Pegada de carbono se sobrepõe à rota tecnológica

Mas o relatório da IEA mencionado no início deste pequeno artigo nos faz atentar para a importância da pegada de carbono de cada rota tecnológica de produção do H2, não de sua coloração que nada define e nos deixa à mercê de conceitos meio nebulosos (IEA, 2023).

As novas regras internacionais atualmente em discussão (onde o Brasil é protagonista), propugna por uma classificação do hidrogênio de acordo com a quantidade de carbono equivalente por kg de hidrogênio produzido no conceito do ciclo de vida, não importando realmente a rota tecnológica adotada. Vale à pena investigar o assunto.

Ainda que não devamos abrir mão dos massivos investimentos atualmente programados para esse setor, principalmente nas frentes de produção de H2 para exportação via amônia, não podemos ficar reféns do lobby da eletrólise, quando temos à nossa disposição uma miríade de fontes de energia renovável como biomassa, rejeitos orgânicos, etanol, etc.

Inclusive não devemos perder a oportunidade de monetizar nossas reservas de gás natural (com CCS, por favor).

Enfim, temos à nossa disposição, aqui mesmo ou nos mercados internacionais uma extensa gama de fabricantes de equipamentos de alta tecnologia para produzir H2 de baixo carbono pelas variadas rotas tecnológicas.

Além do mais, estudo recente do Cebri, importante think tank brasileiro em conjunto com EPE/BID/Cenergia, indica que a biomassa será a fonte de energia que mais ganhará participação relativa na matriz energética brasileira daqui até 2050.

Nesse sentido, a maior parcela dos biocombustíveis se apresenta como relevante contribuição no processo de descarbonização do nosso setor de transportes, na medida em que o uso de BECCS (Bioenergy with Carbon Capture and Storage) na substituição de diesel e QAV resulta em emissões negativas (CEBRI, 2023).

Sem deixar de falar nos investimentos em curso para desenvolvimento de outras alternativas como a produção de H2 por pirólise de biometano por plasma induzido por micro-ondas, atualmente em TRL4 em uma startup brasileira, e a eletrólise da água do mar sem demanda de dessalinização, cuja viabilidade já foi comprovada pela Eletronuclear em Angra dos Reis.

O Programa Nacional do Hidrogênio (PNH2) cujo Plano Trienal foi a consulta pública esse ano, é muito claro em defender nossa neutralidade quanto às rotas tecnológicas para a produção do hidrogênio sustentável, ou renovável.

Não queremos escolher vencedores a priori nem estabelecer trancamento tecnológico. Este e outros assuntos de relevância serão debatidos no 3º Congresso Brasileiro de Hidrogênio, a realizar-se no município de Maricá-RJ no final do mês de maio. Vale ficar de olho.

Nosso compromisso é com a descarbonização. Agora, precisamos evoluir na elaboração de marco regulatório que reforce essa posição. Mas esse é assunto para um próximo artigo.

Carlos Peixoto é cofundador e CEO da H2helium Projetos de Energia, membro do Comitê de Energia da Câmara Britânica (Britcham) e head de Marketing da Associação Brasileira de Captura e Armazenamento de Carbono (CCS Brasil). As opiniões aqui expressas são da exclusiva responsabilidade do autor.

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.

Referências

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Disponível em: <https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/28146/28146_4.PDF>. Acesso em: 20/5/23

Disponível em: <https://www.un.org/en/about-us>. Acesso em: 20/5/23

Disponível em: <https://www.worldenergy.org/publications/entry/regional-insights-low-carbon-hydrogen-scale-up-world-energy-council>. Acesso em: 20/5/23

Disponível em: <https://reliefweb.int/report/world/g7-policy-paper-2023-g7-summit-recommendations-hiroshima-japan?gclid=Cj0KCQjwr82iBhCuARIsAO0EAZzXylduth_jqFTXEhW-gqirrV-QRd2QIP6Zpx-FwzgxH4DWvTW3pL8aAnabEALw_wcB>. Acesso em: 20/5/23

Disponível em: <https://www.iea.org/reports/towards-hydrogen-definitions-based-on-their-emissions-intensity>. Acesso em: 20/5/23

Disponível em: <https://www.ccsbr.com.br/o-que-e-ccs>. Acesso em: 20/5/23

Disponível em: <https://www.irena.org/publications/2022/Jan/Geopolitics-of-the-Energy-Transformation-Hydrogen>. Acesso em: 20/5/23

Disponível em: <https://www.cebri.org/br/doc/309/neutralidade-de-carbono-ate-2050-cenarios-para-uma-transicao-eficiente-no-brasil>. Acesso em: 20/5/23

Disponível em: <https://abh2.org/3-cbh2>. Acesso em: 20/5/23