Energia

A repercussão dos eventos climáticos extremos no setor elétrico brasileiro 

Calamidades no RS expõem a necessidade de políticas robustas para assegurar a operação e os direitos no sistema elétrico, analisam Bruna Correia e Carlos Bingemer

O grande desafio enfrentado no cenário ambiental atual está atrelado às mudanças climáticas, associadas ao impacto das ações antrópicas, responsáveis pela emissão de gases do efeito estufa (GEE). Concomitantemente à necessidade de reduzir as emissões de GEE, está o desafio de lidar e se adaptar aos eventos climáticos extremos (cada vez mais frequentes) e que trazem impactos adversos para os sistemas (tal como o setor elétrico), como os que ocorrem no estado do Rio Grande do Sul.

As enchentes no sul do país evidenciam lacunas que podem comprometer a resiliência e operação regular do sistema elétrico nacional. De acordo com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), aproximadamente 161 mil consumidores tiveram o fornecimento de energia impactado pelas enchentes.

Em meio às incertezas sobre a intensidade e frequência desses eventos, surgem dois desafios para o setor: (i) traçar uma estratégia capaz de garantir a resiliência do sistema elétrico (esse desafio é de caráter operacional e busca neutralizar os impactos na operação e assegurar o acesso ao consumidor final) e (ii) resguardar os direitos e obrigações dos agentes setoriais diante de eventos climáticos extremos (esse desafio é de natureza jurídica).

Apesar desses dois desafios possuírem naturezas distintas (operacional e jurídica), ambos dependem de medidas regulatórias.

Desafios operacionais e jurídicos

Em relação ao primeiro ponto, a Diretoria da Aneel aprovou a flexibilização das regras e procedimentos tanto de comercialização, como de distribuição (essa última com o objetivo de permitir que as distribuidoras concentrem seus esforços no restabelecimento das infraestruturas e das condições de atendimento aos consumidores de energia elétrica afetados pelo contexto de vulnerabilidade).

Já no que diz respeito aos direitos e obrigações dos agentes setoriais, a Agência, por meio do Ofício nº 1/2024-DIR, caracterizou o estado de calamidade pública no sul do país como caso fortuito e força maior. Tais medidas trazem impactos jurídicos sobe os acordos contratuais do setor e permitem o acionamento das cláusulas referentes a “caso fortuito ou força maior” (nos termos do art. 393 do Código Civil), presentes tanto nos contratos do ambiente regulado, como nos contratos de concessão.

Se considerarmos o CCEAR dos Leilões de Geração Aneel nº 4 e nº 5/2023, a Cláusula 13ª, trata dos eventos de caso fortuito ou força maior. De acordo com a minuta, na ocorrência de eventos que afetem o cumprimento das obrigações contratuais, o contrato permanece em vigor, porém a parte atingida pelo evento não responderá pelas consequências do não cumprimento das obrigações contratuais durante a ocorrência do evento. Contudo, a parte afetada não é eximida das obrigações devidas anteriormente ao evento.

No mesmo sentido, a minuta do Contrato de Concessão do Serviço Público de Transmissão de Energia Elétrica, referente ao Leilão de Transmissão nº 1/2024, prevê na Cláusula Décima Oitava, que, na ocorrência de um evento caracterizado como caso fortuito ou força maior, o contrato permanecerá em vigor, mas a transmissora atingida não responderá pelas consequências do não cumprimento das obrigações contratuais durante a ocorrência do evento, o que não exime a parte afetada das obrigações devidas anteriormente ao evento.

Embora a calamidade do Rio Grande do Sul tenha sido caracterizada pela Aneel como caso fortuito e força maior, há sempre algumas particularidades que podem recair aos casos concretos: como delimitar o período de ocorrência do evento? Como especificar quando cessaram as chuvas? E como retomar as obrigações em um cenário de enchentes e inundações?

Infelizmente, não há clareza quanto aos encaminhamentos que serão dados a esses pontos, os quais dependem da especificidade de cada caso concreto (e de cada agente), bem como de análises técnicas e jurídicas detalhadas.

Para concluir, vale destacar também a possibilidade de mudanças no tratamento regulatório e contratual a ser dado caso esses eventos extremos se tornem mais intensos e frequentes (uma vez que a imprevisibilidade é um aspecto importante para caracterizar o caso fortuito e força maior).

Todo esse contexto evidencia que o enfrentamento de eventos climáticos severos exige a integração indissociável de agentes setoriais e entes federativos. É necessário identificar oportunidades de aprimoramento regulatório, através de políticas consistentes que assegurem a segurança sistêmica e viabilizem o bom funcionamento do setor elétrico em circunstâncias extremas e extraordinárias.

Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.

Bruna de Barros Correia é advogada sênior da área de Energia do BMA Advogados.

Carlos Frederico Lucchetti Bingemer é sócio da área de Direito Societário e coordenador da prática de Energia do BMA Advogados.