A participação na matriz elétrica brasileira das fontes alternativas, como solar e eólica, tem aumentado, graças aos avanços tecnológicos, à redução de custos e ao alinhamento com as agendas climática e ambiental.
Ademais, a geração distribuída (GD) permite maior protagonismo dos consumidores, aspiração que também vem sendo refletida na pressão para a ampliação do mercado livre para o segmento de baixa tensão. A perspectiva do E+ Transição Energética é que estes movimentos continuem.
Mas, para que isto aconteça de forma sustentável, são necessários aperfeiçoamentos no desenho do mercado de energia elétrica.
- Na coluna A transição explicada: Importância do desenho do mercado de energia para a transição brasileira
Um dos desses aperfeiçoamentos envolve o incremento da potência (capacidade) do sistema.
A produção das novas fontes alternativas é variável e, portanto, não é capaz de prover uma potência firme, seja pela sua intermitência seja pelas suas características técnicas (falta de inércia).
Para enfrentar essa característica das fontes alternativas, é necessário incrementar a capacidade (MW), e não somente a energia (um atributo que as alternativas podem prover a custos extremamente competitivos).
Até 2021, não havia preocupação com a restrição de capacidade no setor elétrico brasileiro, haja vista que as usinas hidrelétricas podiam ofertar capacidade com certa facilidade.
Entretanto, em virtude do aumento de fontes alternativas e do estresse hídrico, as usinas hidrelétricas não conseguem mais, sozinhas, fornecer a capacidade necessária para atender a demanda de pico e gerenciar contingências, como atesta a crise energética de 2021, onde o Brasil, pela primeira vez, enfrentou uma crise dual — tanto de energia quanto de capacidade.
O governo federal, ciente da nova limitação imposta ao setor elétrico, introduziu de forma pioneira um mecanismo de Redução Voluntária da Demanda (RVD) e começou a realizar leilões para contratação de reserva de capacidade.
A iniciativa é importante para aumentar a confiabilidade, prover uma melhor distribuição de custos e permitir o contínuo crescimento das fontes alternativas. Contudo, há espaço para que seja aperfeiçoada.
Competição no lado da demanda
No que tange ao mecanismo de RVD, um aperfeiçoamento consistiria em aproximá-lo de um mecanismo tradicional, internacionalmente conhecido como Demand Side Bidding (DSB).
A diferença fundamental é que, no DSB, ofertantes e demandantes fazem seus lances (bids) em uma condição isonômica, concorrendo entre si, de forma que, conjuntamente, determinam o preço de equilíbrio. Esse preço será o mesmo enxergado pela oferta e pelo consumo.
Sinais de preço
Deve-se observar, todavia, que o DSB, por se tratar de um mecanismo voluntário, não dá ao Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) a confiança que a demanda estará disponível para “reagir” quando solicitada.
Diante disso, uma solução para lidar com essa limitação é o uso de outros mecanismos, tal como a resposta da demanda (RD), por meio da qual permite-se que a demanda participe dos mercados de capacidade (o mais importante) e de serviços ancilares.
Tais mecanismos são desenhados para dar segurança ao operador, ou seja:
- (i) há uma obrigação dos consumidores em cortar a carga quanto solicitados;
- (ii) o consumidor recebe um pagamento fixo por disponibilidade, como quid pro quo;
- (iii) são tratados, em consequência, como um recurso como se geração o fossem.
No setor elétrico, os mecanismos de resposta de demanda estão intimamente relacionados ao aperfeiçoamento dos sinais de preços.
São instrumentos regulatórios que buscam informar os agentes do setor elétrico, demandantes e ofertantes, do real custo da energia elétrica.
E, com os movimentos de ampliação do mercado livre, de descentralização e de aumento da participação de fontes alternativas, espera-se que esses mecanismos ganhem maior relevância, se de fato desejamos minimizar o custo da energia elétrica ofertada.
Os novos mecanismos de RD, se adequadamente desenhados, deveriam participar dos leilões para contratação de reserva de capacidade (LRC).
Na verdade, não somente a RD, mas todas as tecnologias que, embora não produzam energia, são excelentes e econômicas para prover capacidade.
São os casos da oferta de capacidade adicional por meio de repotenciação e/ou super-motorização de usinas hidrelétricas e armazenamento – nas suas diversas formas, tais como baterias elétricas e usinas reversíveis.
Em outros termos, a concorrência isonômica entre as termelétricas (as quais até agora tem auferido uma reserva de mercado nos leilões de reserva de capacidade), a RD e outras tecnologias provedoras de capacidade podem contribuir para termos sinais de preços mais adequados e menores custos na oferta de energia elétrica.
Limites dos leilões de reserva de capacidade
A participação da RD e de outras tecnologias na oferta de capacidade poderia ter sido implementada em 2021, não fosse a hesitação por parte do governo federal.
Naquele momento, diante da perspectiva de que a realização de apenas um leilão de capacidade não seria suficiente e da necessidade de atrair e remunerar suficientemente novos projetos, houve receio de que o insucesso no primeiro leilão gerasse expectativa negativa em torno dos mecanismos.
Se isso ocorresse, os leilões seguintes seriam negativamente afetados. Assim, o governo federal optou por contar apenas com alternativas já testadas em leilões anteriores, como as termelétricas.
Apesar de o momento crítico da crise de energética de 2021 ter passado, ainda persiste a reserva de mercado para as usinas termelétricas no provimento de capacidade.
Como possíveis razões para esse fato, podem ser apontadas:
- (i) receio de que a demanda não reaja como o faz uma usina geradora;
- (ii) falta de familiaridade com o mercado de capacidade;
- e (iii) possibilidade de, com a contratação de usinas térmicas, enfrentar dois problemas com uma única medida, ou seja, resolve-se a restrição de capacidade e, como bônus, é obtido um recurso para produzir energia elétrica.
Ocorre que a contrapartida de manter a reserva de mercado para a fonte termelétrica não produz o ótimo econômico, pois o custo variável das usinas termelétricas (ao produzir potência) é superior ao custo da DR e de outras tecnologias.
Perde-se, portanto, uma oportunidade para aperfeiçoar o sinal de preços e de reduzir custos ao consumidor.
A participação da RD e de outras tecnologias nos leilões de capacidade permite que se discuta outro aperfeiçoamento na contratação de capacidade associadas: a realização de leilões combinatórios.
Leilão combinatório
É desejável que uma fonte que produza potência também possa produzir energia elétrica de forma sinérgica. Não há razão para forçar uma separação, sobretudo quando a sinergia é possível.
Portanto, um leilão combinatório, que contrate os dois atributos simultaneamente pode buscar uma combinação ótima das diversas tecnologias para o atendimento dos requisitos de potência e de energia elétrica, a partir das necessidades identificadas previamente ao leilão.
Ou seja, um leilão combinatório permite que cada ofertante participe com um ou mais produtos, em função de suas características.
Ressalta-se que o leilão combinatório não impede que participantes ofertem apenas um dos produtos contratados. Isso porque a escolha dos vencedores do leilão seria realizada com base na combinação de todas as ofertas recebidas que minimizassem o custo total ao consumidor, utilizando-se de um modelo de otimização e de uma função objetivo pré-definida.
Assim, seria possível termos um leilão tecnologia-agnóstico, no qual: RD, a potência incremental das usinas hidrelétricas, baterias propriamente ditas e usinas reversíveis poderiam dar seus lances apenas para o atributo potência; e as termelétricas poderiam ofertar potência e energia elétrica, assim como as usinas híbridas que combinem geração a partir de fontes alternativas e armazenamento.
Merece ser destacado que variações deste mecanismo de leilões combinatórios, embora que com produtos distintos, vêm sendo utilizadas em outros países, tais como o Chile (blocos diários de energia), a Colômbia (blocos diários de energia renovável) e, mais recentemente, Portugal (contratação de fonte solar fotovoltaica, com ou sem armazenamento).
O Brasil, com seu protagonismo no desenho de leilões, dispõe do know-how para implementar arranjo semelhante.
Em resumo, a eficiência com o aperfeiçoamento do sinal de preço na contratação de capacidade traria mais concorrência e benefícios para o setor elétrico e para a economia.
Basta observar que a redução no custo da energia elétrica eleva a produtividade da atividade econômica e a renda das famílias.
Ademais, a melhoria no sinal de preço contribui para a transição energética em dois sentidos: reduz barreiras para o aumento da participação das fontes alternativas; e permite que uma energia elétrica de origem renovável, abundante no Brasil, seja disponibilizada de forma mais barata a setores produtivos, o que contribui para a aceleração da descarbonização da matriz elétrica nacional e para o acesso do Brasil ao novo mercado de produtos “verdes” de forma altamente competitiva.
Rutelly Marques é consultor legislativo do Senado Federal na área de Minas e Energia e membro do Conselho do Instituto E+ Transição Energética.
Luiz Maurer é consultor em energia e estratégia.
Pablo Silva Ortiz é Engenheiro de Energia com formação interdisciplinar em gestão de recursos energéticos e tecnologias de conversão de energia, experiência obtida através da participação em projetos de pesquisa e consultoria em instituições de ensino superior e organizações reconhecidas internacionalmente. Atualmente, atua como coordenador técnico do Instituto E+ Transição Energética.