Energia

Decisão da ANP sobre o gasoduto Subida da Serra atinge em cheio o princípio básico da concorrência

Gasoduto de distribuição paulista está alinhado com os princípios da Nova Lei do Gás por garantir o direito de escolha aos consumidores, escreve Bruno Armbrust

Agência reguladora Arsesp propõe flexibilizar limites à concentração no mercado livre de gás natural de São Paulo. Na imagem: Dois trabalhadores uniformizados, e com equipamentos de segurança, em city gate da Comgás, ponto de entrega de gás natural da distribuidora paulista (Foto: Divulgação)
City gate da Comgás, ponto de entrega de gás da distribuidora paulista (Foto: Divulgação)

Costuma-se ironizar atos contraditórios, paradoxais, com um famoso ditado: “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.

É essa a ideia que me ocorreu quando acompanhei, na tarde do dia 25 de julho, a deliberação da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) sobre o gasoduto de distribuição chamado de Subida da Serra.

Acompanho atentamente, há pelo menos três anos, esse processo de discussão e as diferentes manifestações.

Uma das mais recentes, publicada pela agência epbr, é a do diretor geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), Rodolfo Henrique de Saboia, me chamou a atenção.

Em seu voto na reunião de diretoria que deliberou sobre o assunto, Saboia disse que “o impacto do Subida da Serra poderia ferir de morte a Lei do Gás.”

Discordo dessa afirmação, e mais adiante vou explicar o porquê.

De início, é preciso dizer que, ao deliberar que o Subida da Serra deva ser um gasoduto de transporte, a ANP poderá estabelecer uma grande barreira ao direito de escolha do consumidor e o princípio da concorrência.

É uma decisão discriminatória, que invade a competência estadual e dá as costas ao mercado que vem esperando há quase três décadas por um efetivo livre mercado de gás.

Com essa decisão, a ANP afasta o Brasil do principal objetivo do ainda incipiente processo de liberalização do mercado de gás: garantir segurança de fornecimento de gás a preços competitivos.

O gasoduto de distribuição Subida da Serra é apenas um dos possíveis veículos de movimentação do gás proveniente do TRSP. Existe a possibilidade de o terminal integrar a malha sudeste da Nova Transportadora do Sudeste (NTS), com a sua interligação ao Gasan, bastando que a NTS realize os necessários investimentos, conforme a capacidade que deseja escoar do TRSP.

O gasoduto de transporte Gasan, da própria NTS, passa a menos de uma dezena de metros do ponto de entrega do TRSP. Bastaria conectá-lo.

O que não é admissível é que se chancele uma expropriação indevida de um ativo do governo do Estado de São Paulo.

ANP cerceou direito de consumidores de São Paulo

Ao contrário da tese acolhida pela diretoria da ANP, não será o Subida da Serra que irá diminuir a movimentação do gás na malha da NTS, mas sim o direito inalienável que cabe ao consumidor para a escolha de seu fornecedor – e a opção que mais lhe interessa. É isso que está em jogo.

O que fará aumentar a tarifa da NTS, portanto, não é o Subida da Serra, mas sim a descontratação de capacidade do duto da NTS por uma melhor alternativa para o consumidor.

E a Comgás, como concessionária que atende mais de 2,5 milhões de clientes, tem a obrigação de buscar alternativas para o consumidor em sua área de concessão, mediante chamadas públicas em que prevalece o menor preço. Não cabe à ANP cercear esse direito.

Analisando objetivamente a deliberação, é lícito recordar que o preço do gás nos pontos de entrega (city gates) é formado pelo custo da molécula do gás + transporte, sendo que o transporte representa cerca de 15% do preço total.

Assim, considerando que estejam corretas as hipóteses lançadas pela nota técnica Nº 21/2024/SIM-CAT/SIM/ANP-RJ, o que carece de melhor análise, seria desprezível o impacto no preço do gás no city gate. Deveria ter sido essa a análise mais correta der ser feita.

Efeito dos contratos legados

E isso remete aos contratos legados de transporte, assunto prioritário para se faça justiça tarifária no transporte de gás no país – justiça tarifária, diga-se passagem, é a palavra de ordem no governo federal.

Os contratos legados, é pertinente esclarecer, foram o resultado da negociação de dois agentes privados que chegaram a um acordo de compra e venda de ativos de um serviço de utilidade pública (transporte de gás natural) com uma tarifa notoriamente alta com o único objetivo de valorizar o ativo. E quem vem pagando a conta é o consumidor.

Esses contratos que a sociedade tem que engolir geram um ambiente bastante perturbador no processo de abertura de um mercado de gás e da busca de um Brasil competitivo.

Caberia à ANP, em coordenação com o governo, buscar uma alternativa, pois atualmente a estimativa é que se pague cerca de 50% a mais pela tarifa transporte da NTS do que se pagaria sem o efeito dos contratos legados.

Neste caso, a ANP poderia analisar a realização de uma revisão tarifária integral da NTS até o final de 2024, possibilitando a redução das tarifas da NTS a partir de 01/01/2025. A tarifa resultante seria uma média dos 5 anos (2025-2029). Dessa forma, a NTS teria garantida a sua remuneração e as tarifas já seriam reduzidas em 01/01/2025 num percentual de cerca de -29%, um pouco menor que os -38% (estimativa da redução em 01/01/2026 após o fim do contrato legado da malha SE).

Ressalte-se que esse mecanismo não impacta a Receita Máxima Permitida da NTS em 2025, referente ao contrato legado da malha SE e a Petrobras seria compensada em 2026-2029.

Com relação à redução da movimentação do gás no gasoduto de transporte da NTS, essa queda pode ter inúmeras razões como as aqui citadas, e pela frustração de demanda, que pode se agravar com o aumento de tarifas de transporte recentemente homologadas pela ANP de até 27% na tarifa de transporte, depois revisadas para 21%.

Agora, uma pergunta que não quer calar: se alguns fazem coro críticas aos 20% do contrato de concessão vigente em Sergipe, como se viu em recente audiência pública com a presença do próprio diretor-geral da ANP, o que pensar do fato de a NTS ter um WACC (Custo Médio Ponderado de Capital) real de aproximadamente 35% em razão dos contratos legados, pago pelo consumidor?

Outro ponto que precisa ser considerado é a justificativa dada no voto do diretor geral da ANP, quando declarou que “o Subida da Serra fere o princípio de um mercado integrado”.

Cabe indagar o porquê da preocupação da ANP nesse caso da Comgás, quando existem tantos outros exemplos de mercado desintegrado no transporte de gás?

Dois deles são os casos da GNA e da Marlim Azul, no estado do Rio de Janeiro, sem pagamento de tarifa de transporte e sem qualquer manifestação da ANP.

Destaca-se o fato de que uma está conectada diretamente ao gasoduto parte integrante do terminal de GNL e outra à UPGN de Cabiúnas (Tecab), e ambas estão localizadas no estado do Rio de Janeiro, área de atuação da NTS.

No caso da Marlim Azul, em que a ANP, salvo engano, não se pronunciou, se a capacidade da usina termelétrica (UTE) estivesse dentro da malha, a tarifa postal da NTS poderia ser cerca de -7,2%. Isso mesmo! Todos os consumidores estariam pagando cerca de -7,2% de tarifa de transporte.

As UTEs GNA, Marlim Azul e UTE de Sergipe abriram um precedente para outras UTEs existentes poderem construir seus dutos com by pass ao transporte; no caso da malha Sudeste se estima que esse fato tenha potencial para provocar um incremento nas tarifas da NTS em cerca de +28%. Isso, sim, a ANP deveria discutir.

Não é aceitável que o Subida da Serra, um importante ativo pertencente ao Poder Concedente de São Paulo e, em última instância, à sociedade paulista, seja tratado de forma diferenciada e que seja uma infraestrutura subutilizada, gerando ineficiência e deixando de contribuir para a modicidade tarifária dos consumidores paulistas.

Cabe ressaltar que os consumidores da Comgás representam mais de 70% dos consumidores da malha sudeste e a decisão da ANP, se mantida, na prática, irá penalizar a grande maioria dos consumidores de gás do país.

Outro aspecto que não pode ser desconsiderado em uma análise justa são os movimentos recentes ocorridos pela entrada em operação dos terminais privados de GNL.

A Petrobras, espontaneamente, passou a praticar desconto no custo do gás, segundo o diretor Mauricio Tolmasquim, para competir com o gás natural liquefeito (GNL). O desconto, segundo consta dos contratos já divulgados pela ANP, no caso do Rio de Janeiro, é da ordem de 0,85 US$/Mbtu.

Qual seria a decisão da ANP se, na abordagem da nota técnica da SIM/ANP, todas essas questões fossem consideradas?

Passando agora à Nova Lei do Gás

O marco foi aprovado no Congresso Nacional, em 2021, com o propósito de ser um divisor de águas, reduzindo o nível de concentração de mercado e aumentando a concorrência na oferta, panorama que teve alguns progressos pontuais, mas ainda não se concretizou por completo.

Para que essa abertura de mercado se efetive, a regulação deveria apoiar todas as iniciativas que ampliem a livre concorrência e a liberdade de o consumidor escolher seu fornecedor.

Quando houver dúvida, é útil recorrer às boas referências internacionais. Na União Europeia, por exemplo, o nível de concentração é medido com base em parâmetros do Gas Target Model – GTM definidos pela ACER e se utiliza o modelo Herfindahl-Hirschman Index (HHI).

Por esses parâmetros, o HHI de São Paulo, até o início da operação do Subida da Serra, estava próximo dos 10.000 pontos (que indica um mercado altamente concentração e sem concorrência).

Com a entrada em operação do gasoduto, esse índice caiu a menos de 6.000 pontos, fazendo o HHI brasileiro também recuar. Ainda assim, ainda há um longo caminho a percorrer para atingir um índice inferior a 1.500 que indicaria um ambiente de plena concorrência.

Como se vê, apesar dos (ainda tímidos) avanços obtidos com a Nova Lei do Gás, sancionada em 2021, o Brasil segue distante das melhores práticas, em que um mercado competitivo e de baixa concentração deveria ser o objetivo maior.

Nos países onde o processo de liberalização dos mercados já se encontra consolidado ou avançado, cresce a cada dia a visão de que o regulador deva ter como principal função a de empoderar o consumidor. O que se viu na decisão sobre o Subida da Serra foi exatamente o contrário.

Testemunhou-se o empoderamento, pela ANP, de um grupo econômico que opera um serviço de interesse público geral (transporte de gás natural) que, às custas do mercado, vem praticando uma taxa de remuneração incompatível com sua atividade, como também, o atual incumbente, que verá seu poder reforçado.

Concluindo, ao que parece, quero crer que o colegiado da ANP tenha sido levado a uma decisão equivocada, talvez pelo modo com que o processo foi conduzido, com uma análise isolada em um novo documento que, a rigor, deveria ter sido submetido à consulta pública para as devidas contribuições e o direito ao contraditório, seguindo os princípios da transparência e da boa governança regulatória?

Por isso mesmo, é importante uma reavaliação, não só para o bem da concorrência, mas em benefício da grande maioria dos consumidores de gás da malha Sudeste e do país.

É a razão pela qual entendo que a ANP – uma instituição que conta com 26 anos de bons serviços prestados ao País desde sua implantação, em 1998 – tem o dever de voltar a discutir o tema Subida da Serra, sem tratamento discriminatório, com o foco ampliado e não como um fator isolado.

Bruno Armbrust é sócio fundador da ARM Consultoria. Foi presidente do grupo Gás Natural Fenosa, atual Naturgy, na Itália e VP da Assogas (Associação dos Grupos Privados de Gás na Itália) entre os anos de 2003 e 2007, e presidente do grupo Naturgy no Brasil de 2007 a 2019.