Energia

Admirável mundo novo: algumas considerações sobre o mercado de energia elétrica e o ‘Open Energy’ no Brasil

Open Energy precisa evitar as mesmas falhas da abertura do mercado, escrevem Alberto Büll, Enrico Romanielo e Livia Amorim

Ilustração do conceito moderno da indústria e redes de comunicação inteligentes
Ilustração do conceito moderno da indústria e redes de comunicação inteligentes

Os mercados desenvolvidos de eletricidade permitem ideias que podem parecer inconcebíveis para um consumidor brasileiro. É possível receber energia elétrica gratuita à noite? Comprar energia solar e receber um certificado de que a fonte era realmente limpa? Sim, o produto é ofertado no Texas. É possível contratar energia a preços fixos ou dinâmicos, a depender do custo de geração? Sim, o produto está disponível no Reino Unido e na Estônia, por exemplo, mais ou menos como já ocorre aqui com o preço do Uber.

Mundo afora, ofertam-se pacotes de produtos diversos para os consumidores, incluindo a recarga de veículos elétricos, seguros etc. Não é difícil a partir disso imaginar ferramentas de comparação de preços de pacotes de produtos diferentes que incluam energia elétrica (como marketplaces, Google Shopping, Bondfaro ou Buscapé), e eles de fato já existem.

Esse ambiente de negócios produz inovação, induz o surgimento de novas tecnologias, permite novos investimentos (inclusive por venture capital ou private equity), cria empregos, tem o potencial de promover livre competição e, enfim, alavanca a atividade econômica e promove bem-estar social. É um “Admirável Mundo Novo”, como já disseram Shakespeare [1] e Aldous Huxley [2], mas sem ironia nem distopia.

No Brasil, em 2012, a Aneel editou a Resolução 482, criando o Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE); em 2015, a Agência aperfeiçoou o mecanismo regulatório; e, em 2022, foi editada a Lei nº 14.300, estabelecendo o marco legal da mini e microgeração distribuídas (GD).

E, neste ano de 2024, o país caminhou de forma relevante para a abertura do mercado de energia elétrica – a exemplo do que se tem visto nos últimos anos em diversos outros setores regulados, como o Setor Financeiro e o Sistema de Pagamentos Brasileiro, e as telecomunicações, com a criação de diversas medidas regulatórias pró-competitivas. Nessa linha, a partir do início de janeiro, consumidores integrantes do chamado “Grupo A” podem migrar para o mercado livre de energia.

Empoderamento do consumidor

Mesmo que a Lei 9.074/1995 diga que, desde 2003, a União poderia ter diminuído “os limites de carga e tensão estabelecidos” para que consumidores pudessem caracterizar-se como livres, a escolha política do Poder Concedente consistiu em não abrir o mercado. O resultado foi que inovações e avanços que poderiam ter sido percebidos no setor elétrico do país não ocorreram.

Ainda que seja importante conduzir aberturas de mercado com cautela, para endereçar problemas de transição (contratos legados, educação e apresentação dos riscos aos novos potenciais consumidores livres, mecanismos de suprimento de última instância etc.), a necessidade de endereçar problemas não pode levar a um esvaziamento do comando legal de abertura.

Esses fatos são importantes à luz da discussão sobre o Open Energy, conforme vem sendo nomeado pelo mercado, ou seja, criar uma estrutura regulatória e técnica para que os consumidores possam compartilhar informações sobre seu consumo de energia elétrica com quem desejarem, a fim de que, por exemplo, lhes possam ser ofertados produtos mais benéficos.

É a mesma lógica vista em outros segmentos, como o Sistema Financeiro e Sistema de Pagamentos Brasileiro, com a criação do Open Banking, que já evoluiu para o Open Finance, buscando empoderar o consumidor, reduzir barreiras à entrada e estimular a competição e novos modelos de negócios.

O consumidor é, ou deveria ser, o destinatário último de todas as políticas públicas adotadas no setor elétrico brasileiro e o protagonista em todas as discussões a respeito. Esse consumidor quer ter alternativas disponíveis de fornecedores (em outras palavras, maior competição), e, mais importante, poder escolher aquele serviço ou produto que melhor se adeque ao atendimento de suas necessidades e objetivos.

Logo, é essencial que todas as discussões a respeito de reformas no setor elétrico considerem como – e não se – adotar o Open Energy. Independentemente da maior ou menor abertura do mercado livre de energia – ou mesmo que ele fique como está –, o mecanismo se aplica. Isto é, o Open Energy deve servir desde já tantos aos consumidores livres quanto aos consumidores cativos elegíveis a migração para o mercado livre.

Futuro digital

A discussão é atual. Em 29/11/2023, a agência reguladora do setor de energia no Reino Unido (o Office of the Electricity and Gas Markets, ou Ofgem) instaurou processo de consulta sobre digitalização e futuro digital, cujo período de contribuição acabou de expirar (em 26/01/2024).

No documento que iniciou o processo [3], a Ofgem mencionou o exemplo de vários mecanismos de consentimento de consumidores para o compartilhamento de suas informações que já foram implantados em certas jurisdições:

  • (i) o próprio Reino Unido, com o Open Banking;
  • (ii) a União Europeia, com a publicação em 06/06/2023 do “Regulamento de Execução (UE) 2023/1162 da Comissão Europeia relativo a requisitos de interoperabilidade e a procedimentos transparentes e não discriminatórios de acesso a dados de contagem e de consumo [de eletricidade]” [4];
  • (iii) a Austrália, com o Consumer Data Right [5];
  • e (iv) os Estados Unidos, com a Green Button Initiative [6].

O próprio caso da adoção do Open Banking (agora Open Finance) no Brasil também é um exemplo de compartilhamento de informações que pode servir de paradigma para a Aneel [7].

A partir da experiência internacional, análise de outros setores e pesquisas realizadas para fins deste artigo, podem ser apontados alguns critérios e preocupações (não exaustivas) que deveriam ser considerados pela Aneel para a adoção do Open Energy:

1. Opt In e Opt Out

O titular das informações sobre os gastos com energia elétrica é o consumidor. Assim, e a exemplo do Open Finance no Brasil, da legislação e regulamentação de dados e privacidade, e de exemplos internacionais, o consentimento do consumidor para o compartilhamento de dados é essencial.

2. Compartilhamento de contas de energia elétrica

A criação de um sistema de compartilhamento de informações pode ocorrer de forma gradativa. Em um primeiro momento, bastaria por exemplo a criação de normas para o compartilhamento de contas de energia elétrica com os vários fornecedores de produtos.

Hoje, seja no mercado livre de energia, seja no mercado de GD, prestadores de serviço alternativos dependem da iniciativa do consumidor de enviar manualmente ou mediante sistema digitalizado (se disponível) as informações. Há, assim, um desincentivo para o compartilhamento, na medida em que, sendo o tempo um recurso escasso, o usuário talvez não queira ou não possa se dar ao trabalho de percorrer todo o caminho necessário para compartilhar informações. Pode-se aventar, por exemplo, a criação de APIs para facilitar e viabilizar o compartilhamento amplo desses dados.

3. Compartilhamento de outras informações

Serão tanto maiores os benefícios do Open Energy para o consumidor quanto maior for a prevalência de medidores inteligentes (smart meters) e a efetiva inteligência do sistema de distribuição brasileiro (smart grid). Atenção imediata deve ser dada à infraestrutura técnica de medição de dados [8], portanto, e aos meios para aprimorá-la.

Há algumas iniciativas pontuais para a instalação de medidores inteligentes no Brasil, mas ainda é pouco. Inclusive, a própria regulamentação atual sobre o tema apresenta questões que devem ser discutidas – especialmente, o tratamento tarifário aplicável e a forma como está hoje estruturado o serviço público de distribuição de energia elétrica [9].

De toda forma, o ponto é que, com o avanço da implantação de medidores inteligentes, os consumidores poderão compartilhar mais informações que não apenas as contas de energia elétrica. Assim, é necessário que o destinatário dessas informações seja confiável e que o compartilhamento se dê de forma segura. Essa questão já foi discutida na Áustria e tem de ser regulada [10].

4. Aspectos concorrenciais

As concessionárias e as permissionárias do serviço de distribuição de energia elétrica atuam na comercialização de energia elétrica para os consumidores cativos. É possível também que grupos econômicos atuem tanto na distribuição como na comercialização de energia elétrica, mesmo que tais atividades sejam segregadas.

Os aspectos concorrenciais de tal situação merecem atenção. A exemplo do que se verifica no Open Finance, a livre circulação de informações entre os vários fornecedores de energia elétrica é fundamental para garantir a competição.

No que se refere aos itens 3 e 4, aliás, o momento é propício para a avaliação do Open Energy, na medida em que as condições e normas para a renovação das concessões de distribuição de energia elétrica ainda não foram definidas.

Mais que isso, é imprescindível que as normas para compartilhamento sejam obrigatórias ao menos para determinados players do mercado de energia, a partir de critérios que considerem seu porte e poder econômico.

5. Proteção de dados e cooperação entre agências

No compartilhamento de dados no contexto do Open Energy, será aplicada a Lei Geral de Proteção de Dados. Muito embora não seja um requisito absoluto, seria preferível que a regulamentação do tema contasse desde logo com a participação da Agência Nacional de Proteção de Dados, de modo a evitar que controvérsias jurídicas e de competência prejudiquem o próprio desenvolvimento do mecanismo e o compartilhamento de informações (a exemplo do que se verificou na Holanda) [11].

6. Cyber segurança e Interoperabilidade

A estrutura tecnológica do Open Energy deve ser robusta de modo a evitar vazamento de dados e os dados devem ser transferíveis de forma simples. O Open Finance no Brasil é um paradigma importante.

O Brasil fez uma reforma incompleta do setor elétrico. De uma forma ou outra, certos conceitos essenciais que foram previstos nos anos 90 não foram afinal implementados, com prejuízos para o consumidor. Não devemos ir pelo mesmo caminho com o Open Energy. Do contrário, estaremos os consumidores condenados a ficar na distopia elétrica em que vivemos hoje (como num “Bizarro World”, de Otto Oscar Binder e Wayne Boring), em busca da utópica “Ilha” (metafórico-elétrica em nosso caso) de Huxley (The Island, 1962). Em tal cenário, ficaremos muito mais longe do Net Zero e de uma transição energética bem-sucedida até 2050.

Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.

Alberto Büll, sócio do escritório Veirano Advogados (Foto: Divulgação)
Alberto Büll
Enrico Romanielo, sócio do escritório Veirano Advogados (Foto: Divulgação)
Enrico Romanielo
Livia Amorim, sócia do escritório Veirano Advogados (Foto: Divulgação)
Livia Amorim

Alberto Büll, Enrico Romanielo e Livia Amorim são sócios do escritório Veirano Advogados.

Referências

[1] The Tempest, 1610 ou 1611.

[2] Brave New World, 1932.

[3] https://www.ofgem.gov.uk/publications/data-sharing-digital-future. Acesso em 31.01.2024.

[4] Regulamento de Execução (UE) 2023/1162 da Comissão de 6 de junho de 2023 relativo a requisitos de interoperabilidade e a procedimentos transparentes e não discriminatórios de acesso a dados de contagem e de consumo (Texto relevante para efeitos do EEE) (OJ L 154 15.06.2023, p. 10, ELI: https://eur-lex.europa.eu/eli/reg_impl/2023/1162/oj).

[5] https://www.cdr.gov.au/what-is-cdr. Acesso em 31/01/2024.

[6] https://www.energy.gov/data/green-button. Acesso em 31/01/2024.

[7] https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/openfinance. Acesso em 31/01/2024.

[8] Os custos para uma possível universalização da instalação de medidores inteligentes nos sistemas de distribuição não são desprezíveis. No entanto, é fundamental que o país determine uma forma de atingirmos esse objetivo.

[9] Nesse sentido, veja-se a contribuição da Abradee– Associação Brasileira de Distribuidoras de Energia Elétrica para fins da Consulta Pública nº 152/2023, do MME, disponível em https://antigo.mme.gov.br/c/document_library/get_file?uuid=536e73c7-0686-e282-b757-f6c931fd03ab&groupId=436859. Acesso em 31/01/2024.

[10] Susen Döbelt, Markus Jung, Marc Busch, Manfred Tscheligi. Consumers’ privacy concerns and implications for a privacy preserving Smart Grid architecture – Results of an Austrian study, Energy Research & Social Science, Volume 9, 2015, Pages 137-145, ISSN 2214-6296, https://doi.org/10.1016/j.erss.2015.08.022. (https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2214629615300451).

[11] Apráez, B. E. (2022). The challenges of sharing data at the intersection of EU data protection and electricity market legislation: Lessons from the Netherlands. Journal of Energy & Natural Resources Law, 1-27. Advance online publication. https://doi.org/10.1080/02646811.2022.2143673. Acesso em 31/01/2024.