Energia

O que o seu eletrodoméstico tem a ver com a transição?

Aço verde produzido com hidrogênio pode aumentar valor agregado e exportações de eletrodomésticos brasileiros, escrevem Priscila Arruda e Rodolfo Gomes

Entenda o que o a eficiência e o consumo do seu eletrodoméstico tem a ver com a transição energética. Na imagem: Refrigeradores expostos em loja de venda de eletrodomésticos (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)
Refrigeradores expostos em loja de venda de eletrodomésticos (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Ao mesmo tempo em que são essenciais para a vida diária, os eletrodomésticos impactam negativamente o planeta simplesmente pelo fato de consumirem energia.

A Clasp – organização que dá assistência técnica a governos que buscam aprimorar a eficiência técnica e ambiental dos equipamentos – estima que os eletrodomésticos para uso residencial foram responsáveis por 15% das emissões globais de gás carbônico em 2021.

Esse percentual sobe para 25% se incluídos os aparelhos de aplicação comercial. Isso sem contar a energia gasta para a produção e transporte dos equipamentos até chegarem na casa dos consumidores.

Em um cenário de ondas recorrentes de calor, a demanda por energia para refrigeração e climatização deve aumentar significativamente. Estimativas da International Energy Agency (IEA) indicam um crescimento de até 50% na demanda por eletricidade para climatização em 2030, se não houver avanços regulatórios e tecnológicos relevantes.

O Brasil já começa a observar esses efeitos: o aumento do uso de ventiladores, aparelhos de ar condicionado e outros equipamentos de refrigeração durante as ondas de calor de novembro passado levou a demanda por energia elétrica a superar o recorde histórico de 100 GW, segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).

Esses fatos evidenciam porque eletrodomésticos mais eficientes são essenciais para amenizar picos de carga, reduzir emissões de gases de efeito estufa e evitar o aumento dos custos relacionados à expansão das capacidades instaladas de geração e transmissão. Logo, a eficiência energética é um vetor essencial da transição energética.

Eletrodomésticos ineficientes também geram impactos sociais que não condizem com uma transição energética justa. A geladeira que conserva os alimentos e, em muitos casos, contribui para a geração de renda extra para as famílias de baixa renda, é o eletrodoméstico com maior impacto na conta de luz.

Segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), o equipamento é responsável por de 35% a 40% do consumo de eletricidade das residências com renda de até cinco salários mínimos.

Ao mesmo tempo, as famílias de baixa renda são beneficiadas pela Tarifa Social de Energia Elétrica, cujos custos são subsidiados. Ou seja, eletrodomésticos ineficientes também geram impactos diretos e indiretos para os demais consumidores de energia.

Baixa eficiência para padrões internacionais limita exportações

O Brasil conta com instrumentos que regulam os índices de eficiência energética – etiqueta do Inmetro, índices mínimos de eficiência energética ou máximos de consumo de energia e Selo Procel – que, se fossem atualizados de forma periódica, poderiam estimular a oferta de eletrodomésticos mais eficientes.

Contudo, o avanço das políticas de eficiência energética é limitado, entre outros fatores, pela falta de produtos mais eficientes no mercado brasileiro. O fato é que há uma forte resistência da indústria local em adotar padrões semelhantes aos de outros países industrializados que, em muitos casos, já são obrigatórios mesmo em países de baixa renda não industrializados.

Com a Resolução nº 2 do Ministério de Minas e Energia (MME) e do Comitê Gestor de Indicadores e Níveis de Eficiência Energética (CGIEE), publicada em 23 de novembro de 2023, a pior geladeira fabricada no Brasil (com índice de eficiência de 90%) consumirá, entre 2026 e 2030, em média 50% mais eletricidade do que a geladeira menos eficiente de países como Angola, Moçambique, Namíbia, Quênia, Tanzânia, Uganda e Zimbábue. Apenas em 2031, o índice máximo de consumo de energia adotado pelo Brasil deve ser levemente melhor do que o desses países.

A indústria brasileira de refrigeração é dominada por um conjunto de empresas multinacionais, as mesmas que vendem produtos mais eficientes ao redor do mundo. Em 2022, duas subsidiárias responderam por cerca de 80% das vendas de refrigeradores no mercado brasileiro, segundo o Euromonitor.

Por gastarem mais energia, alguns dos eletrodomésticos produzidos no Brasil não podem ser vendidos no mercado externo. Em 2021, foram exportados somente 2% da produção nacional total de 6,5 milhões de refrigeradores domésticos. A concentração das vendas da produção local no mercado interno também ocorre no segmento de ar-condicionado.

Maior demanda por climatização e refrigeração pode ser oportunidade

Por outro lado, o Brasil é um dos poucos países do mundo que tem uma indústria consolidada de eletrodomésticos, incluindo equipamentos de refrigeração e climatização residencial e comercial. São fabricados no país compressores, o componente mais complexo da geladeira e do ar-condicionado, inclusive para serem exportados para os EUA e Europa que impõem parâmetros mais rígidos de eficiência energética.

De acordo com a Clasp, das 3,6 bilhões de pessoas que viviam em 2021 nas regiões mais vulneráveis às ações das mudanças climáticas, 1,7 bilhão não tinham refrigerador e 1,2 bilhão não tinham ventilador ou ar-condicionado.

Sendo assim, o aumento da demanda por climatização e refrigeração no mundo nas próximas décadas pode ser uma oportunidade para o Brasil recolocar os bens duráveis na sua pauta exportadora. Porém, a indústria local precisa se atualizar.

O Brasil conta com um ecossistema de inovação que pode ser acionado em um projeto nacional de desenvolvimento de eletrodomésticos que consumam muito menos energia e incorporem princípios de economia circular – o que seria aderente à Nova Política Industrial de Descarbonização lançada no dia 22 de janeiro de 2024.

Além de fomentar produtos mais eficientes para o mercado interno, o Brasil pode ofertar para o resto do mundo itens com menor impacto ambiental e, portanto, maior valor agregado, utilizando por exemplo o aço verde produzido com hidrogênio de baixo carbono.

O aumento de escala daí proporcionado e com maior valor agregado poderá baratear os equipamentos oferecidos internamente. Mas, para isso, é urgente que a eficiência energética da ponta do sistema, isto é, aquela relacionada aos equipamentos ou eletrodomésticos que são diretamente ligados na tomada pelo consumidor, seja uma prioridade comum, coordenada, monitorada e avaliada das políticas energética e industrial brasileiras.

Priscila Arruda, analista do Programa de Energia e Sustentabilidade do Idec, organização membro da Rede Kigali (Foto: Divulgação)
Priscila Arruda
Rodolfo Gomes, coordenador da Rede Kigali e diretor executivo do IEI Brasil (Foto: Divulgação)
Rodolfo Gomes

Priscila Arruda é analista do Programa de Energia e Sustentabilidade do Idec, organização membro da Rede Kigali, e Rodolfo Gomes é coordenador da Rede Kigali e diretor executivo do IEI Brasil.

A Rede Kigali é composta por organizações da sociedade civil e tem como propósito promover a eficiência energética como um instrumento para atingir múltiplos benefícios para a sociedade brasileira e para o consumidor. A rede é composta pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Instituto Clima e Sociedade (iCS), International Energy Initiative – IEI Brasil e Projeto Hospitais Saudáveis (PHS).