É mesmo curioso. Um pequeno tracajá se encontra quietinho, engastado em uma das forquilhas mais altas de um angelim secular. Passa quase despercebido, quelônios maiores povoam a copa dessa inusitada árvore. Mas ele tem nome: é o parágrafo 15, do artigo 22 do projeto de lei 11.247/2018, recém aprovado na Câmara dos Deputados e enviado ao Senado Federal.
O propósito desse PL é relevante: ampliar as atribuições institucionais relacionadas à Política Energética Nacional com o objetivo de “promover o desenvolvimento da geração de energia elétrica a partir de fonte eólica localizada nas águas interiores, no mar territorial e na zona econômica exclusiva e da geração de energia elétrica a partir de fonte solar fotovoltaica”.
Proposto no Senado em 2017, esse projeto foi aprovado em 2018 e remetido para revisão na Câmara dos Deputados, onde foram apensados 179 (!) projetos de lei, sendo aprovado em regime de urgência pelo plenário em 30/11/2023, e retorna então ao Senado para aprovação final.
Durante a tramitação na Câmara esse projeto ampliou bastante seu escopo inicial e passou a incluir alterações preocupantes em todo o marco legal e regulatório do sistema elétrico, que têm recebido justificadas críticas de entidades atuantes no setor elétrico e energético.
Em síntese, essas entidades alertam que “é preciso que os membros do Parlamento entendam que o planejamento energético é algo extremamente complexo e delicado. A escolha entre várias alternativas decorre de estudos prévios, e a decisão de fixar em lei geração por determinadas fontes somente agrava o processo de decisão, pois muitas vezes não considera a alternativa mais viável em termos técnicos, econômicos e ambientais”.
Embora não conste da emenda e seja, de fato, um elemento estranho ao objetivo da lei, esse projeto se aventura equivocadamente no campo do hidrogênio, a nova sereia do setor energético.
O tracajá no angelim propõe um remendo na Lei de Desestatização da Eletrobras, dispondo que: “Adicionalmente às disposições previstas no §1° deste artigo, também deverão ser contratadas 250 MW de energia proveniente hidrogênio líquido, a partir do etanol na Região Nordeste, com contratação até o segundo semestre de 2024, e entrega até 31 de dezembro de 2029”.
O hidrogênio renovável, definido corretamente em outro projeto, o PL 2.308/2023, deverá progressivamente participar da matriz energética global nas próximas décadas. São elevados os investimentos nesse sentido, adotando eletricidade como insumo.
Mas a biomassa pode ser uma fonte competitiva e sustentável de hidrogênio, sobretudo em países como o Brasil, que contam com clima adequado, terras disponíveis e domínio das cadeias de produção e conversão em bioenergia.
Entretanto, o hidrogênio de biomassa ainda precisa percorrer uma curva de aprendizagem, desenvolvendo e aperfeiçoando processos e equipamentos eficientes e confiáveis. Já existem empresas no Brasil, como a Hytron NEA, preparando-se para esse novo mercado. Uma tecnologia promissora não pode ser promovida de forma equivocada, precipitada.
O PL 11.247/2018 define metas inexequíveis e impõe custos elevados à toda a sociedade. Não se justificam a potência a instalar, o prazo exíguo, a necessidade de liquefazer o hidrogênio (o que consome cerca de 40% da energia do hidrogênio a baixa pressão) e se ignora o biogás como insumo potencialmente viável para produzir o hidrogênio, que conta inclusive com projetos em desenvolvimento no Brasil.
O desejável desenvolvimento e a efetiva implantação de projetos de produção e uso de hidrogênio renovável no Brasil precisam ocorrer em um marco de racionalidade e responsabilidade. Temos condições para isso, inclusive com o uso de biomassa. Nesse sentido, leis e políticas públicas são essenciais. Mas elas não podem ser tristes exemplos da famosa frase de Bismarck: “leis são como salsichas, melhor não saber como são feitas…”
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.
Luiz Augusto Horta Nogueira é professor da Universidade Federal de Itajubá, doutor em Engenharia Mecânica (Unicamp). Ex-diretor da ANP, é pesquisador e consultor com passagem em entidades internacionais, entre elas FAO, Cepal e outras agências das Nações Unidas.
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