RIO – A vitória de Javier Milei na eleição presidencial argentina, no domingo (19/11), levanta dúvidas sobre a reaproximação entre o Brasil e o país vizinho e sobre o projeto comum de integração energética, com foco no gás natural, entre as duas potências econômicas da América do Sul.
Alinhado ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), Milei assumiu durante a campanha eleitoral um discurso hostil ao atual presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT), marcando a sua oposição ao candidato governista Sergio Massa, ministro da Fazenda de Alberto Fernández – que, este ano, intensificou as conversas sobre o plano de exportar gás ao mercado brasileiro.
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O apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) à construção do 2º trecho do gasoduto Nestor Kirchner, na Argentina, foi tema constante nos encontros diplomáticos entre Fernández e Lula este ano.
O empreendimento pode abrir as portas para que o gás de Vaca Muerta, na Argentina, seja exportado, no futuro, para o Brasil – o que tem alimentado expectativas, entre empresários brasileiros, sobre a possibilidade de importação de gás competitivo para a indústria.
Mas o que será da aproximação entre os dois países no mercado de gás, agora, no governo Milei?
O que se sabe até agora
A relação com Lula
Ao longo da campanha, na Argentina, Milei fez ataques frequentes ao presidente brasileiro. Chamou Lula de corrupto, de um socialista com “vocação totalitária” e disse que não faria negócios com o petista.
“Não só não farei negócios com a China, como não farei negócios com nenhum comunista. Sou um defensor da liberdade, da paz e da democracia. Os comunistas não se enquadram nisso. Os chineses não entram aí. Putin não entra aí. Lula, digamos, não entra aí”, falou Milei, em entrevista ao jornalista estadunidense, Tucker Carlson.
Discurso calibrado
Nas últimas semanas, às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais argentinas, Milei moderou um pouco o tom. Questionado se manterá relações econômicas do país com o Brasil e China, respondeu que acredita na abertura do comércio internacional e que o comércio do setor privado com o Brasil continuará existindo, ainda que defenda que o Estado não deve interferir nas relações internacionais.
“Diante dessas mentiras que dizem que eu sinalizo que não tem que comercializar com a China, com o Brasil, eu digo que é falso. Mas é uma questão dos privados, o Estado não tem que ficar se metendo, porque cada vez que o Estado se mete, gera corrupção e isso gera queda do bem-estar dos argentinos”, disse, no debate presidencial da semana passada.
Após o resultado nas urnas
Lula reagiu parabenizando o novo governo argentino, sem citar Milei, e afirmou que o Brasil “sempre estará à disposição para trabalhar junto com nossos irmãos argentinos”.
A possibilidade de Lula comparecer à posse do novo presidente argentino, contudo, é pouco provável.
“Acho que o presidente Lula, pelo que eu conheço dele, que haja sido objeto de ofensas pessoais, é muito difícil ele ir”, disse Celso Amorim, assessor do presidente para Relações Exteriores, à Globonews.
Milei, aliás, se comunicou com Bolsonaro após a vitória e o convidou para a posse, segundo o advogado do ex-presidente, Fabio Wajngarten.
O aceno argentino
Logo após a vitória de Milei, ainda no domingo (19), o embaixador brasileiro em Buenos Aires, Julio Bitelli, relatou à CNN que pessoas próximas ao novo presidente eleito da Argentina confirmaram o interesse de Milei de manter em pé o projeto de integração no mercado de gás com o Brasil.
“Discuti esse tema com gente ligada ao Milei e óbvio que até, em função da visão de mundo que tem o presidente eleito, que é de uma eficiência econômica se sobrepondo a outros aspectos, interessa à Argentina que esse gás possa ir ao Brasil”, disse o embaixador brasileiro à CNN Brasil.
No Brasil, a visão no Ministério da Fazenda é que no curto prazo Milei adotará um tom mais moderado e pragmático nas relações econômicas com o Brasil e não deve deixar o Mercosul, de acordo com reportagem do O Globo.
Na Argentina, Milei terá o desafio de garantir alianças políticas no Congresso para conseguir governar, já que seu partido, o Liberdade Avança, é minoria tanto na Câmara, como no Senado. O grupo conta com 39 dos 257 deputados, e 7 dos 72 senadores, na nova composição do Congresso.
A integração Brasil-Argentina, porém, não é consenso
Em agosto, após as primárias confirmarem a força de Milei na corrida presidencial, o seu assessor de energia na campanha, Eduardo Rodríguez Chirillo, deu algumas sinalizações desfavoráveis ao plano de exportação de gás para o Brasil, via gasoduto.
Quem é Chirillo? O consultor trabalhou com o secretário de Energia Carlos Bastos durante o primeiro governo de Carlos Menem, na década de 1990 – período no qual o setor passou por um processo de desregulamentação e privatização.
Segundo Chirillo, cabe ao setor privado construir e financiar a infraestrutura de exportação. Ele defendeu ainda que seria mais vantajoso para a Argentina exportar o gás de Vaca Muerta por meio de gás natural liquefeito (GNL) – o que daria ao país mais flexibilidade, dado o caráter sazonal da disponibilidade do gás argentino, e mais liberdade para que as empresas argentinas acessassem mais mercados, não ficando restritas ao Brasil.
“É arriscado dizer que o Brasil vai comprar de nós todo o gás que precisa, quando terá sete terminais de GNL para trazer gás e que a Bolívia vai permitir que nós passemos tranquilamente como inquilinos para podermos vender ao Brasil”, disse.
Que Milei governará?
Para Pedro Silva Barros, coordenador do projeto Integração Regional: o Brasil e a América do Sul, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ainda é prematuro sentenciar qualquer revés – ou continuidade – do projeto de integração energética entre Brasil e Argentina, sob a nova configuração política.
O momento, segundo ele, é de mais incertezas do que certezas – e investimentos em infraestrutura entre dois países pedem o contrário: a construção de condições políticas que tragam estabilidade e segurança.
Barros não acredita que um eventual projeto de integração entre os dois países, no mercado de gás natural, evoluirá de imediato. Por mais que os governos de Lula e Alberto Fernández tenham construído as bases de uma parceria, um plano conjunto desse tipo envolve decisões de longo prazo que precisam ser amadurecidas num terreno propício.
Primeiro, destaca ele, é preciso saber qual será o perfil de gestão de Milei. Embora o presidente eleito na Argentina tenha assumido uma postura avessa a uma relação de cooperação com o governo brasileiro de Lula, há espaço para que a integração energética se desenvolva.
“Uma coisa é o candidato e a outra é o governante. A partir de 10 de dezembro ele vai começar a governar, mas qual será o Milei que vai governar? O do primeiro turno ou o mais moderado, com mais a cara de Mauricio Macri [ex-presidente argentino]?”, questiona Barros, ex-diretor de Assuntos Econômicos da União de Nações Sul-Americanas (Unasul).
“Claro que um projeto de integração desse tipo é muito facilitado quando há um entendimento mais amplo e um diálogo fluido entre governos, mas essas são questões mais profundas que um governo. Temos uma pauta econômica importante com a Argentina, uma relação comercial diversificada, uma fronteira extensa e seguiremos sendo vizinhos com muitas complementaridades. É possível ter uma agenda positiva em algumas questões pontuais, projetos específicos como o do gasoduto”, complementou.
Barros destaca que o assunto envolve o interesse de agentes privados nos dois países.
A bola, agora, está com o governo argentino. A posição do governo brasileiro, lembra ele, é clara: a de que deseja ter uma relação de Estado com o país vizinho.