Autoridades pressionaram pelo fim da concessão da Enel São Paulo depois do temporal que atingiu a cidade na sexta-feira (11/10) e afetou o fornecimento de energia de mais de 2,6 milhões de consumidores.
O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), e o governador do estado, Tarcísio Freitas (Republicanos), pediram a abertura imediata do processo de caducidade do contrato. Já o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), criticou a Aneel por não punir a empresa. Ele disse que não há possibilidade de renovação da concessão.
A própria agência reguladora informou que pode instaurar um processo que pode levar à caducidade da concessão. Isso se a Enel não apresentar solução satisfatória e imediata para o abastecimento.
Afinal, a Enel pode perder a concessão por causa dos apagões que afetam São Paulo?
Especialistas apontam que é improvável que os problemas levem a Enel a perder o contrato de distribuição. Eles apontam, no entanto, que há precedentes de empresas que foram consideradas incapacitadas e perderam concessões.
Entenda o que está em jogo e quais podem ser os impactos para a Enel e para os consumidores:
Como a Enel chegou em São Paulo?
A italiana Enel assumiu a distribuição de energia elétrica da cidade de São Paulo e outros 23 municípios da região metropolitana em 2018. Na época, comprou 73% da Eletropaulo por R$ 5,5 bilhões, vencendo disputa com outros grandes grupos, como a Energisa e a Neoenergia.
Além de São Paulo, a Enel também atua na distribuição nos estados do Rio de Janeiro e Ceará, assim como na geração e comercialização de energia elétrica.
A prefeitura pode solicitar o fim de uma concessão de energia elétrica?
Não há lastro jurídico no pedido do prefeito, segundo especialistas em regulação ouvidos pela eixos. Isso porque as concessões de distribuição de energia são de competência federal. A regulação das distribuidoras fica a cargo da Aneel e do Ministério de Minas e Energia (MME).
A prefeitura pode, no entanto, solicitar à Aneel a abertura de um processo de fiscalização para verificar se o atendimento da companhia foi adequado. Isso eventualmente poderia levar a um processo de caducidade do contrato.
A fiscalização, no entanto, já foi iniciada pela própria Aneel, em conjunto com a agência reguladora estadual, a Arsesp. A Aneel afirma que tem “dado prioridade máxima ao tema”.
Qual é o procedimento que a Aneel vai seguir?
O processo de fiscalização da Aneel levanta dados sobre os eventos que levaram à falta de energia e a demora no restabelecimento do fornecimento, além de ouvir os argumentos da Enel.
Alguns dos fatores que a agência analisa são a preparação da companhia para lidar com eventos climáticos críticos, o desempenho na prevenção, a capacidade de restabelecimento da luz e a adequação, preparo e quantitativo das equipes utilizadas na recomposição, assim como a execução do plano de contingência.
O objetivo do processo é apurar responsabilidades e aplicar eventuais sanções, como penas e multas. Eventualmente, o relatório final poderia indicar a necessidade de início de um processo de caducidade da concessão, ou seja, do término do contrato.
“Isso é mais complexo e extenso”, diz o especialista em energia da Imagem Geosistemas, Alexandre Aleixo.
Caso ocorra a decisão de abrir o processo de caducidade, a Aneel precisaria avaliar se a companhia tem capacidade econômico-financeira para seguir com a prestação do serviço. Se comprovada a falta de habilidade, a agência pode determinar uma intervenção direta na distribuidora, com o afastamento da Enel e a abertura de uma nova licitação para que outra empresa assuma o contrato. A própria companhia também pode optar por se desfazer do contrato e vender a concessão.
Fontes jurídicas apontam, no entanto, que a declaração de caducidade seria uma medida extrema e incomum. O mais provável, dizem, é que as agências reguladoras peçam que a companhia assine um termo de ajustamento de conduta, com as medidas a serem adotadas para evitar que situações similares voltem a ocorrer.
Por quais motivos um contrato de concessão pode ser encerrado no país?
Para declarar a caducidade de uma concessão de distribuição, é necessário que a Aneel comprove que a empresa responsável não tem capacidade de cumprir com as obrigações da atividade. Os deveres que precisam ser cumpridos por todas as distribuidoras são estabelecidos em normas da agência e também estão expressos no contrato de concessão.
Felipe Castilho, advogado do Kincaid Mendes Vianna Advogados, aponta que a decisão sobre a caducidade de um contrato também precisa levar em consideração os impactos desse processo para a sociedade. Ele lembra que o fim do contrato tende a ser questionado na Justiça e pode levar anos.
“É necessário avaliar o custo-benefício: é melhor extinguir unilateralmente o contrato ou avaliar o que pode ser melhorado? É preciso também averiguar se todos os problemas são de fato consequência da má prestação do serviço pela empresa”, afirma.
Especialistas apontam que é raro que uma empresa seja considerada incapacitada, pois as distribuidoras são responsáveis por receber todos os pagamentos dos usuários de energia.
“As concessionárias de distribuição têm um fluxo de caixa bastante forte por conta do faturamento em cima da energia elétrica. Então, se houver uma administração razoável, ela existe a capacidade de fazer jus às obrigações da concessão”, diz Aleixo.
Qual o desempenho da Enel São Paulo, segundo os critérios da Aneel?
Uma das maneiras da Aneel medir o desempenho das distribuidoras por critérios de frequência (FEC) e duração (DEC) de interrupções no fornecimento.
No caso da concessão da Enel em São Paulo, os índices se mantêm há cerca de quatro anos dentro dos limites regulatórios.
Em setembro de 2023, dado mais recente divulgado pela agência, o limite para o DEC da companhia foi de 6,27 por unidade consumidora, abaixo do limite de 7,11.
Nesse mesmo mês, o FEC foi de 3,34 por unidade consumidora, também inferior ao máximo de 4,89 tolerado pela agência.
Há casos de caducidade dos contratos de distribuição no Brasil?
Um caso relativamente recente foi o do Grupo Rede, que passou por uma intervenção da Aneel a partir de setembro de 2012. Na época, a companhia tinha uma dívida de quase R$ 6 bilhões, além de apresentar problemas na qualidade do serviço. O grupo atendia a mais de três milhões de unidades consumidoras no Pará, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e São Paulo.
A Aneel precisou apontar um interventor para assumir as atividades do grupo, até que as concessões foram oferecidas novamente em leilão, em 2013. Os vencedores das disputas foram a Energisa e a Equatorial. O encerramento do processo de intervenção ocorreu apenas depois da transferência do controle e da aprovação de um plano de recuperação judicial para as concessionárias.
Como a situação da Enel pode impactar a renovação da concessão?
Os primeiros contratos de distribuição do país foram assinados na década de 1990, com duração de 30 anos. Com isso, a maioria começa a vencer em 2025, por isso, os termos para renovação dessas concessões estão sendo discutidos pelo MME ao longo do ano.
A Enel está entre as primeiras companhias com o contrato vencendo, no caso das atividades no Rio de Janeiro, em 2026. Em São Paulo, a concessão vence em 2028.
O Estado, que é o poder concedente, pode rejeitar um pedido de renovação. Por isso, uma eventual avaliação negativa da capacidade da Enel de cumprir com as obrigações da concessão em São Paulo, por exemplo, poderia impactar um eventual pedido da companhia de prorrogação das concessões, dizem especialistas.
“Pode ser que a maioria desses problemas da Enel em São Paulo não venha de uma má prestação de serviços, mas sim de outros fatores. Estamos falando de um cenário de mudanças climáticas. É necessário analisar a matriz de risco da companhia diante dos problemas apresentados”, afirma Castilho do Kincaid Mendes Vianna Advogados.