RIO – A reclassificação do gasoduto Subida da Serra pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) – como um ativo de distribuição da Comgás e não mais como de transporte – implicará num aumento imediato de 6% nas tarifas dos usuários da Nova Transportadora do Sudeste (NTS).
Essa alta pode chegar a 14%, a depender da dinâmica do mercado paulista, estima o Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da FGV (FGV Ceri).
Um estudo da consultoria, encomendado pela ATGás (transportadoras), destaca que a operação do gasoduto de forma verticalizada com o Terminal de Regaseificação de São Paulo (TRSP), da Compass (controladora da Comgás), deslocará uma parte expressiva do volume de gás que circula pela malha da NTS – encarecendo o serviço para os demais usuários da rede.
Isso porque o sistema de transporte funciona como uma espécie de condomínio. A transportadora é remunerada pela infraestrutura por uma receita permitida, que é repartida entre os usuários. Se o número de carregadores (quem contrata a capacidade) e o volume caem, o valor a ser pago pelos demais cresce.
O estudo foi publicado nesta quinta (3/8), num momento em que a ANP coleta contribuições do mercado sobre a proposta de acordo com a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp) para encerrar a disputa federativa entre os dois órgãos reguladores sobre a classificação do Subida da Serra. A minuta estabelece condicionantes para que o gasoduto seja considerado uma rede de distribuição da Comgás.
Subida da Serra esvaziará malha da NTS
Com a perspectiva de entrada em operação do TRSP, este ano, a Comgás reduziu os volumes contratados junto à Petrobras – sua principal fornecedora. Os novos contratos assinados entre a distribuidora e a estatal preveem um corte de 3 milhões de m³/dia nos volumes contratados em 2024, em relação aos contratos de suprimento entre as partes que se encerram no fim deste ano.
Na prática, são 3 milhões de m³/dia a menos que serão movimentados nos gasodutos de transporte em 2024 – já que esse gás tende a ser suprido pelo TRSP, via Subida da Serra, sem entrar na malha das transportadoras.
Esse volume representa 47% da quantidade contratada recebida atualmente pela Comgás nos pontos de saída da NTS. A área de concessão da distribuidora paulista concentra o maior mercado consumidor de gás natural do Brasil.
A Comgás tem contrato com a Compass, para aquisição de 3,125 milhões de m³/dia do TRSP, com possibilidade de retirada de mais 1,5 milhão de m³/dia, a ser solicitada a qualquer momento.
A FGV estimou então o impacto tarifário, para os clientes da NTS, em três cenários:
- na retirada da quantidade já contratada de 3,125 milhões de m³/dia, cujo volume será deslocado imediatamente da malha da NTS com a operação do TRSP e do Subida da Serra, o aumento tarifário médio para os usuários da transportadora é de 6%;
- na retirada de 4,625 milhões de m³/dia (ou seja, incluído o volume extra de 1,5 milhão de m3/dia previsto no contrato entre Comgás e Compass), o aumento médio nas tarifas será de 9%;
- e se todo o volume de gás que a malha da NTS abastece a Comgás for substituído pelo GNL importado, via Subida da Serra, o impacto tarifário médio pode chegar a 14%.
O cálculo da FGV não leva em conta uma eventual entrada de gás novo no sistema da NTS, em São Paulo, de forma que ajude a compensar a perda dos volumes que abastecem a Comgás.
FGV vê problema econômico, regulatório e legal
A FGV Ceri pontua que o aumento das tarifas de transporte da NTS ocorrerá imediatamente, por meio das tarifas de transporte extraordinário.
Embora a receita das transportadoras ainda esteja resguardada com os contratos legados firmados com a Petrobras como carregadora, o estudo destaca que o vencimento de parte dos contratos (cerca de 30% da receita) já ocorre em 2025, com impacto imediato para as tarifas de transporte pela redução do volume contratado fora da malha integrada.
A FGV Ceri também destaca que os usuários da Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil (TBG) também serão impactados pela redução de entrega de gás através do Gasbol para a Comgás. O real impacto, contudo, dependerá dos parâmetros do próximo ciclo tarifário da transportadora para o quinquênio a partir de 2025.
Se considerada a redução do volume transportado na malha da TBG somente em 2024 – o último ano do atual ciclo tarifário – o aumento médio estimado nas tarifas é de 12%.
Do ponto de vista qualitativo, a FGV Ceri destaca que a crença de que os consumidores locais da Comgás serão beneficiados pela operação vertical com o TRSP – por evitar a incidência de tarifa de transporte – é míope. Argumenta, então, que:
- Do ponto de vista econômico, o acesso direto da distribuidora a fontes de oferta reduz, na prática, “as possibilidades de acesso (de terceiros) ao mercado liberalizado, restringindo a multiplicidade de agentes atuantes na movimentação da commodity e a abrangência da área potencial de comercialização”;
- Do ponto de vista regulatório, permitir que a distribuidora detenha ativo de natureza de transporte (e atue na comercialização) equivale, na prática, a permitir que um transportador detenha capacidade no gasoduto para comercialização da molécula, o que não é permitido pela Nova Lei do Gás. Esse tipo de verticalização tende a práticas discriminatórias de acesso e exercício de poder dominante – ou seja, “a rede deixa de ser neutra, comprometendo a separação crucial entre atividades monopolistas (rede) e competitivas (comercialização)”;
- e do ponto de vista jurídico: a detenção de gasoduto de transporte por uma distribuidora fere a previsão constitucional de titularidade e competência regulatória para os elos de transporte e comercialização e a neutralidade da rede determinada pela Nova Lei do Gás – uma vez que anula na prática a separação entre transporte e comercialização.
“Basicamente está se dando o direito a esse agente [Comgás] de ser um transportador não regulado. A ANP não tem como regular se ele deu acesso ou não deu acesso, se criou ou não dificuldade. Porque ela está se declarando fora do limite [de competência]”., comenta o diretor-presidente da ATGás, Rogério Manso.
As transportadoras, representadas pela ATGás, pedem desde 2021 que a ANP tome medidas para impedir as obras do Subida da Serra. A agência, porém, nunca atendeu ao pleito. Agora, a ATGás volta seus esforços para tentar impedir que o TRSP seja autorizado pelo regulador a operar.
Como chegamos até aqui
- em 2019, na 4ª revisão tarifária da Comgás, o projeto Subida da Serra, orçado em R$ 473 milhões, foi incluído no plano de investimento da distribuidora;
- em novembro de 2020, a ATGás provocou a ANP sobre o fato de a Arsesp ter classificado o gasoduto como de distribuição;
- em setembro de 2021, a diretoria da ANP decidiu que o projeto se trata de um gasoduto de transporte – tanto nos termos da legislação vigente à época de sua autorização pela Arsesp (11.909/2009) quanto pela Nova Lei do Gás (14.134/2021);
- em 2022, após avaliar as manifestações das partes envolvidas e a vistoria ao local do gasoduto e análise de questões jurídicas, a área técnica da ANP se manifestou pela viabilidade de um acordo com a Arsesp para que o gasoduto possa operar em conformidade com as legislações federal e estadual;
- a ATGás chegou a processar o diretor da ANP, Fernando Moura, por contrariar decisões da área técnica da agência ao propor um acordo com a Arsesp;
- em janeiro de 2023, a proposta de acordo foi encaminhada para deliberação pela diretoria da ANP, mas foi objeto de pedidos de vista por duas vezes. O diretor-geral, Rodolfo Saboia, questionou então sobre “outras opções de acordo”.
- agora, em junho de 2023, a nova proposta de acordo volta à pauta da diretoria da ANP
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O que diz a ANP
Na nota técnica que subsidiou a decisão da diretoria da agência, de reclassificar o projeto Subida da Serra, a ANP defendeu que, em termos práticos, o gasoduto transportaria gás proveniente de uma conexão direta com uma UPGN ou um terminal de regaseificação, até os pontos de recebimento da Comgás (os city-gates) – o que se encaixa na definição de gasoduto de transporte da antiga Lei do Gás.
A ANP cita nota técnica da própria Arsesp, da 4ª revisão tarifária da Comgás, que reconhece que o Subida da Serra possui “características operacionais que o assemelham a um gasoduto de transporte”.
O documento da agência paulista, ao destacar os benefícios do Subida da Serra, chega a mencionar que o projeto “permitiria às demais distribuidoras paulistas se beneficiarem dessa infraestrutura, tendo acesso a um custo de gás natural mais competitivo, através da troca operacional (swap)”.
A ANP também destaca as características técnicas do gasoduto, projetado com 31,5 km de extensão em tubos de aço de 20 polegadas, pressão de 70 bar, e capacidade de movimentar até 16 milhões de m³/dia.
“A despeito de não se adotar no Brasil a diferenciação entre gasoduto de transporte e de distribuição por razões técnicas operacionais, chama a atenção a substancial diferença entre o tipo de instalação utilizada pela Comgás e o proposto no projeto, evidenciando que a finalidade do gasoduto difere da usual na distribuição de gás canalizado”, alegou a ANP.
Uma das críticas que se faz ao projeto é que ele reforça o modelo das “ilhas de gás” – desenvolvimento de projetos desconectados da malha de transporte que atendem ao interesse somente local, ou de determinados agentes, e que “aprisionam” a molécula à fonte de suprimento de um único projeto, limitando a competição e alternativa de suprimento a outros agentes.
O que dizem a Comgás e Arsesp
A Arsesp alega que o Subida da Serra tem como objetivo atender aos consumidores paulistas e oferecer reforço de suprimento da rede da Comgás – e que, portanto, “o interesse local do Estado de São Paulo foi amplamente considerado e justificado”.
Argumenta, ainda, que a Nova Lei do Gás, para garantir a segurança jurídica do setor, decidiu que os gasodutos estaduais não seriam passíveis de reclassificação pela ANP.
E menciona que o projeto consiste num reforço da rede de distribuição que tem início num ponto de entrega e recebimento de gás (o city-gate de Cubatão II) e se interconecta aos demais gasodutos da Comgás, por meio de Estações de Redução de Pressão, até chegar ao consumidor final.
A Comgás, por sua vez, nega que o projeto conecte uma fonte de suprimento com sua rede de distribuição.
Embora o Subida da Serra tenha dimensões maiores que os de uma rede de distribuição convencional, a empresa alega que a distinção entre gasodutos de transporte e distribuição, no Brasil, não é baseada nas suas características físicas.
A Nova Lei do Gás até prevê a possibilidade de classificação de um gasoduto como de transporte por suas características técnicas de “diâmetro, pressão e extensão”, mas o assunto ainda não está regulamentado.
Ao defender o caráter local do projeto, argumenta que o Subida da Serra visa a atender aos consumidores finais da Comgás, e não a comercialização para terceiros fora da área de concessão da empresa.
A distribuidora argumenta que o gasoduto liga o ponto de entrega estadual, infraestrutura da concessionária, a outras instalações da própria companhia (estações de redução de pressão), para atendimento ao consumidor final.
E cita que, “ainda que se pudesse considerar que o projeto promove a ligação entre um terminal de GNL ou uma UPGN à rede de distribuição, o que sequer é o caso, ele seria lícito” e que não há uma obrigatoriedade legal de conexão de terminal de GNL à infraestrutura de transporte.
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