Energia

Gasig merece olhar mais atento da diretoria da ANP

Projeto é cercado de incógnitas que podem onerar o consumidor, mas ANP tem oportunidade de rever assunto com mais profundidade, analisa Gustavo De Marchi

Gasig merece olhar mais atento da diretoria da ANP. Na imagem, autor do artigo: Gustavo De Marchi, sócio do Décio Freire Advogados e Vice-presidente da Comissão de Energia da OAB/RJ (Foto: Divulgação)
Gustavo De Marchi, sócio do Décio Freire Advogados e Vice-presidente da Comissão de Energia da OAB/RJ (Foto: Divulgação)

O mercado de gás começou o ano com uma notícia até certo ponto surpreendente: a autorização para a pré-operação do gasoduto Itaboraí-Guapimirim, o Gasig.

É um projeto de 11 quilômetros, que ligará a unidade de processamento no Polo GasLub (ex-Comperj) à malha de gasodutos já existentes da Nova Transportadora do Sudeste (NTS), propondo-se a escoar a produção da Bacia de Santos pela chamada Rota 3, o duto de escoamento ainda não operacional da Petrobras.

A autorização foi concedida pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), que completou 25 anos de existência em 14 de janeiro deste ano, com reconhecido histórico de bons serviços prestados ao país desde 1998.

Importante fazer esse registro, sobretudo em um momento em que as agências reguladoras estão sob ataque, pois a criação delas foi uma conquista árdua e cara para o país, fruto de uma reforma administrativa criteriosa e necessária, que teve como objetivo principal o isolamento de pressões políticas para o funcionamento de áreas estruturantes para o Estado.

Portanto, é simplesmente impossível falar do desenvolvimento brasileiro sem mencionar o trabalho das agências reguladoras que possuem papel fundamental para a criação de um ambiente regulatório equilibrado, exigente, mas sempre com a missão de fomentar e desenvolver os setores estratégicos do país, a exemplo da ANP quanto ao mercado de Petróleo & Gás.

Nesse sentido, também não podemos deixar esquecer que a ANP passou por um momento recente de apuros, uma vez que seu quadro diretivo se encontrava incompleto e, nesse lapso de tempo, com imensos desafios para cumprir uma volumosa agenda regulatória, principalmente a decorrente do processo de abertura do mercado de gás iniciado em 2019. Por isso mesmo, é auspicioso que a agência novamente tenha seu quadro completo.

Portanto, o momento é oportuno para pedir a atenção da ANP, devidamente recomposta e renovada, para diversas questões relacionadas ao Gasig.

Trata-se de uma mui bem-vinda e necessária infraestrutura, sem sombra de dúvidas. Mas, como projeto, ainda guarda uma série de pontos obscuros, algo que seguramente demanda um olhar mais atento e criterioso da diretoria da ANP.

Os pontos de atenção

Senão, vejamos. Em 2022, a ANP, por intermédio da consulta pública 07/2022, lançou um processo para obter subsídios e informações adicionais sobre o edital de chamada pública que seria lançado para a contratação de capacidade incremental de transporte de gás natural referente ao Gasig.

Basicamente, o edital tinha dois objetivos principais:

  • Identificar a demanda por contratação de capacidade firme nesse gasoduto;
  • e, posteriormente, em tese, permitir a condução de processo competitivo entre potenciais interessados — do ponto de vista processual, isso ocorre mediante a apresentação de minuta do edital, minuta de contrato de prestação de serviços de transporte e notas técnicas aplicáveis ao processo.

Infelizmente, o processo deixou lacunas preocupantes e que merecem toda a atenção da ANP.

Não ficou claro, por exemplo, de que modo a futura chamada pública fará interface com as obrigações impostas à Petrobras em Termo de Compromisso de Cessação (TCC) firmado com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Assinado em julho de 2019, o TCC, convém resgatar, determina a liberação de capacidade na malha de transporte. Esclarecer essa questão é crucial para a competitividade da chamada pública.

Mais: a proposta apresentada na consulta pública estruturava uma oferta da capacidade somente no trecho a ser construído. Faltou clareza sobre o acesso ao restante da malha de transporte da NTS, que continua, contratualmente, sob controle da Petrobras.

Ou seja, é legítimo que se questione uma possível discriminação capaz de prejudicar os demais potenciais participantes do processo competitivo. Cabe aqui um raciocínio: de pouco valerá a contratação de capacidade firme no primeiro trecho (nos 11 quilômetros do Gasig) se não houver a oportunidade de contratação equivalente para acesso aos demais gasodutos da malha, correto?

Além disso, faltou um maior zelo com as devidas verificação e transparência dos custos declarados pela NTS para a construção do Gasig, uma vez que tais custos inevitavelmente servirão de base para a formação das tarifas de transporte relativas ao novo gasoduto, motivo pelo qual o Gasig já tivera sua implementação cancelada em 2016.

Naquela oportunidade, ressalte-se, tanto o Tribunal de Contas da União (TCU) como a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) haviam constatado a inadequação dos custos de investimento para fins de cálculo tarifário no âmbito do projeto original do Gasig.

Passados seis anos, o valor apresentado pela NTS na consulta pública 07/2022 para a obra (já concluída, aliás) foi de R$ 330,9 milhões — cifra 162% acima dos R$ 112 milhões estimados em 2015.

O risco é do transportador

O significativo aumento no custo apresentado pela NTS na Consulta Pública, de 162%, repita-se, supera a variação apontada por qualquer um dos indicadores de indexação, entre eles o IGPM/FGV, que é o critério adotado para reajustar as tarifas de transporte.

Não por acaso, tamanha dilatação no orçamento foi duramente questionada pela cadeia de gás natural — inclusive produtores, grandes consumidores e concessionárias de distribuição.

Tais agentes do mercado mostraram inquietação com o impacto para a competitividade da molécula de gás natural em toda a cadeia, principalmente para os consumidores finais.

Em sua resposta, a então gestão da ANP reconhecera que não havia exercido verificação detalhada das rubricas de custo da obra informadas pela NTS, afirmando que a estimativa da transportadora fora aceita “de boa-fé” pela agência reguladora.

Aliás, conforme lembrou a Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace) em sua contribuição na consulta pública, a ANP havia autorizado que a NTS utilizasse um percentual igual a 120% dos custos de capital estimados para o cálculo tarifário, permitindo uma “gordura” para mitigar riscos do transportador aos custos dos consumidores no início da operação comercial do gasoduto.

Para aprofundar:

Quem paga a conta, cabe adicionar, é o consumidor — principalmente a indústria.

A estruturação tarifária e a alocação de riscos, nesse caso, parece ignorar as próprias diretrizes da Nova Lei do Gás (Lei nº 14.134, de 8 de abril de 2021), que institui normas para a exploração das atividades econômicas de transporte de gás natural e que, em seu artigo 1º, parágrafo 2º, qualifica explicitamente o transporte de gás como “atividade econômica” que corre “por conta e risco do empreendedor” e “não constitui, em qualquer hipótese, prestação de serviço público”.

É o que argumenta, em sua contribuição à consulta, a Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás), que assinala não ser admissível que se permita às transportadoras desfrutar de um regime de garantias tarifárias que seja mais oneroso aos usuários dos serviços de gás e argumenta, ainda, que “esse regime jurídico deve ser acompanhado de uma redução, e não de um aumento das proteções ínsitas ao regime tarifário”.

Afinal, cabe o comentário adicional, o ativo será privado e o risco corresponde ao empreendedor; logo, não faz sentido que o Poder Público garanta, de antemão, um descabido retorno do investimento.

E isso difere completamente do regime de concessão, aplicado em outros elos da cadeia produtiva como a Exploração e a Distribuição de gás canalizado.

Com tantos questionamentos, a continuidade da consulta pública ficou então condicionada a uma análise crítica das estimativas de custos do projeto apresentados pela NTS, com base na atualização feita para o projeto do mesmo gasoduto.

No último documento público disponibilizado no processo, em junho de 2022, a ANP solicita que a NTS prepare uma análise comparativa dos custos reais com as estimativas de investimento originais do projeto e apresente um documento com a memória dos preços dos principais insumos que impactaram a estimativa do investimento — dentre eles, o preço do aço e das tubulações –, para que se justificasse o acréscimo entre os orçamentos executados para a mesma obra, um pela Petrobras e outro pela NTS.

Tais informações ainda não vieram a conhecimento público.

Uma das críticas ao processo é o critério de depreciação em apenas 15 anos, contra uma vida útil dos gasodutos que pode ultrapassar 30 anos (o próprio Ministério de Minas e Energia estipula um prazo de 25 anos como razoável).

Outras giram em torno do desequilíbrio na alocação de riscos a serem assumidos pela NTS e por todos aqueles que contratem o serviço de transporte.

Uma chance para se repensar o assunto

Em suma: a versão inicial da chamada favorece a transportadora. Se prevalecerem as propostas submetidas pela consulta pública 07/22, e ainda não respondidas pelo órgão regulador, o que ficará é um ônus totalmente incompatível com a boa regulação do setor, prejudicando os carregadores de gás natural e todo o mercado.

Nunca é demais salientar que qualquer ônus desproporcional e desnecessário acaba migrando para a tarifa. Tal como está modelado, o Gasig oferece muitas garantias ao operador do negócio, remunerando o transportador em níveis muito além dos razoáveis. Isso transfere o risco para os demais agentes da cadeia produtiva e, pior, onera o consumidor, que, no fim do dia, é quem paga a conta.

A sociedade requer mais esclarecimentos, sobretudo em um momento em que o mercado de gás vive a expectativa de um grande desenvolvimento, dentro dos planos do Ministério de Minas e Energia para dinamizar o setor de gás natural.

O governo está corretíssimo ao ver o gás como poderoso indutor da reindustrialização de setores relevantes da economia nacional. Mas esses avanços não podem patinar em incertezas que impedem a competitividade do setor, frustrando não só os consumidores, que aspiram por um sistema mais eficiente que permitam tarifas mais justas, mas também os investidores, que ficam de mãos atadas, mesmo tendo apetite para investir.

Tudo isso pode ser repensado pela nova distribuição das áreas técnicas entre os diretores da ANP, que tem a chance de desfazer equívocos anteriores e de proceder com um exame mais criterioso desse caso — para o bem do mercado de gás nacional.

A ANP tem a oportunidade de rever o assunto com mais profundidade, trazendo suas contribuições para iniciar uma nova era na agência reguladora, imprimindo o estado da arte na regulação, à altura da história que marcou grande parte dos 25 anos da ANP. Somente assim o país poderá ter um crescimento saudável com projetos competitivos e transparentes.

Gustavo De Marchi é sócio do Décio Freire Advogados e vice-presidente da Comissão de Energia da OAB/RJ. É membro titular do Corpo de Árbitros na Câmara FGV de Conciliação e Arbitragem, vice-presidente do Setor Elétrico do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA), coordenador nacional da temática de Direito da Energia na Escola Nacional de Advocacia do Conselho Federal da OAB e consultor jurídico da FGV Energia. É consultor jurídico da Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás).

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.