Combustíveis e Bioenergia

Refino na China e o trilema incentivos, modicidade e segurança do abastecimento

Reformas regulatórias no mercado de combustível chinês conciliaram forte presença estatal com entrada de agentes internacionais, escreve Luis Adolfo Beckstein

Refino na China e o trilema incentivos, modicidade e segurança do abastecimento. Na imagem: refinaria durante a noite com luzes acesas (Foto: Pixabay)
A tradicional indústria privada de refino e química acelera a integração, a transformação e a atualização de layout (Foto: Pixabay)

Desde a entrada da China para Organização Mundial do Comércio em 2001, diversos mercados passaram por um processo gradual de abertura, dentre esses o de combustíveis.

A reforma dos preços e taxas do petróleo refinado em dezembro de 2008 estabeleceu o atual mecanismo de fixação de preços de produtos refinados.

Nos últimos anos, o mecanismo geral de preços tem sofrido alterações com o intuito de aprimorar seu funcionamento, de forma a garantir o abastecimento, ao mesmo tempo em que promove o aumento da concorrência no mercado, sem renunciar à segurança de abastecimento.

De acordo com o Conselho Nacional de Energia (CNE) chinês, a operação do mecanismo de reajuste vem sendo aprimorada para resolver problemas decorrentes do ciclo de reajuste de preços excessivamente longo e aumentar a sua transparência.

Dessa forma, a China procurou adotar um modelo híbrido que, ao mesmo tempo em que busca incorporar e aprofundar a utilização de métricas de mercado, implementa mecanismos de proteção aos consumidores (teto) e aos produtores (piso) contra variações extremas de preços.

Ademais, a segurança de abastecimento é um objetivo inegociável do governo chinês, sobejamente em um cenário de acirramento de disputas comerciais, econômicas e bélicas, entre as principais potências do mundo.

Como avaliar a política para o abastecimento de combustíveis?

Desde a fundação da Teoria Econômica da Regulação por Stigler, em 1971,  a regulação de preços e mercados se sofisticou sobremaneira.

Conceitos como Better Regulation, Smart Regulation e Regulatory Impact Assessment tomaram conta do dia a dia de reguladores e formuladores de políticas econômicas e setoriais.

Mas como avaliar se uma política é adequada?

Um dos mais respeitados manuais na atualidade sobre regulação econômica, o “Manual de Regulação de Oxford”, preconiza que para decidir se um sistema de regulação é bom, aceitável ou precisa ser reformado, é necessário ter clareza sobre os benchmarks que são relevantes para o alcance dos objetivos traçados.

O presente artigo visa a analisar a evolução da política de preços de combustíveis na China, ao longo de pouco mais de 20 anos, a fim de alcançar o trilema modicidade tarifária, aderência a preços internacionais e segurança de abastecimento.

Caracterização do mercado de refino global

A despeito da urgência da transição energética, está claro que o mundo não será capaz de eliminar totalmente o uso de combustíveis fósseis. Não obstante, o atingindo das metas de emissões líquidas se dará com a ajuda de mecanismos compensatórios, como o mercado de carbono.

De acordo com dados do World Energy Outlook 2022 da Agência Internacional de Energia (IEA, em inglês), o mercado de refino mundial atingiu a capacidade de pouco mais de 101 milhões de barris/dia (MM b/d) em 2021.

Nesse sentido o maior produtor mundial é os Estados Unidos com pouco mais de 18 MM b/d de capacidade, seguidos pela China com pouco mais de 17 MM b/d. Já a demanda por produtos refinados sai de pouco mais de 81 MM b/d em 2021, para cerca de 87 MM b/d em 2030 e 89 MM b/d em 2050.

O refino na China

Conforme supracitado, a China é o segundo maior país em termos de capacidade de refino, com  17 MM b/d. Outras fontes, no entanto, como o Baker Institute, apontam que a capacidade de refino da China, em 2021, já estaria em 22,4 MM b/d.

Na produção, o mercado é dominado por duas grandes estatais de petróleo Sinopec e PetroChina, com 37% e 27% de market share, respectivamente. Além disso, conta com players privados, nacionais e estrangeiros.

As refinarias tea pots

Pelo lado dos refinadores privados nacionais, a China conta com pequenas empresas que atuam de forma independente, as chamadas tea pots.

As tea pots são as pequenas refinarias independentes, localizadas, em grande parte, na província de Shandong.

Curiosamente são chamadas por esse nome em virtude de seu design inicial em forma de forno de barro e por seu tamanho em relação às gigantes National Oil Companies.

Em termos de tamanho, sua média de capacidade é de 70.000 bd/d, sendo algumas com apenas 20.000 bd/d.

Em 2009, a Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma (CNDR) estipulou que até 2011 refinarias com capacidade inferior a 20.000 bp/d deveriam ser fechadas e que refinarias com capacidade de 20.000 – 40.000 bp/d deveriam ser fundidas ou atualizadas.

Como resultado, a capacidade das refinarias independentes aumentou substancialmente. Em outubro de 2013, a Conselho Nacional de Energia (CNE) divulgou para comentários públicos uma proposta para alocar refinarias independentes 200.000 bp/d de petróleo importado por ano.

Em 2015, o governo central tomou a decisão de permitir que as tea pots passassem a importar diretamente petróleo, por meio do estabelecimento de quotas. O objetivo foi consolidar o setor de refino independente e expor as NOC à competição para se tornarem mais eficientes.

O governo concedeu sua primeira cota de importação a uma refinaria independente sob o novo regime de comércio de petróleo em julho de 2015.

Até o final de 2016, a ANE havia concedido cotas anuais de importação de petróleo bruto a 19 refinarias, totalizando 1,5 MM bp/d, e o Ministério do Comércio havia concedido licenças de importação de petróleo bruto a 13 das 19 refinarias, totalizando 1,1 MM bp/d.

A queda nos preços do petróleo levou o governo central em dezembro de 2015 a suspender a prática de ajustar os preços do diesel e da gasolina a cada dez dias úteis de acordo com as flutuações nos preços globais do petróleo.

Em seguida, o governo central anunciou que não haveria mudanças nos preços do diesel e da gasolina enquanto o petróleo fosse negociado abaixo de US$ 40/bbl.

O objetivo era limitar as perdas a montante das NOC, cujos custos de produção estavam ligeiramente acima de US$ 40/bbl. Não obstante, as refinarias independentes também se beneficiaram do piso dos preços do petróleo, embora não tenham operações a montante.

O maior acesso ao petróleo importado combinado com o piso do preço do petróleo estimulou uma reversão da sorte das refinarias independentes, especialmente no início de 2016, quando os preços do petróleo eram inferiores a US$ 40/bbl.

As taxas de utilização das refinarias independentes que estavam em torno de 30% em 2014 subiram substancialmente ao final de 2016. Os independentes continuaram sendo o principal impulsionador do crescimento de 13,8% da China nas importações de petróleo bruto no primeiro semestre de 2017 em relação ao mesmo período de 2016.

Histórico e dinâmica de formação de preços de combustíveis

Desde 1998 o governo central começou a introduzir uma série de mudanças na regulamentação sobre os preços de petróleo na China, de forma a aprimorar o mecanismo de preços de mercado e a concorrência no setor.

Anteriormente a 1998, o preço de venda dos combustíveis era definido pelo governo chinês. A partir desse ano, foi criada uma regra formal para a definição dos preços de combustíveis.

Esta passou a ser atrelada a uma cesta de preços internacionais de petróleo, que são utilizadas para definir um preço teto do varejo. 

Abaixo desse teto, os players passaram a ter liberdade para definir os preços de acordo com o mercado.

De 1998 a 2001, o governo chinês utilizou os preços do petróleo spot de Cingapura como benchmark.

Ajustes adicionais eram feitos quando o gap entre preços domésticos e internacionais se tornaram grandes demais. De 2001 a 2005 a métrica era uma média ponderada do WTI spot (60%), Cingapura spot (30%) e Brent spot (10%).

Em 2006 a métrica mudou novamente e esse preço passou a ser calculado por uma média ponderada do Brent spot (40%), Ásia Dubai Fatech spot (30%) e Minas da Indonésia spot (30%).

Em 2009, CNDR emitiu o documento “Medidas para a Administração dos Preços do Petróleo” para implementação experimental, que em seu artigo 7º estabelecia que quando o preço médio móvel do petróleo bruto no mercado internacional por 22 dias úteis consecutivos sofresse variação superior a 4%, o preço doméstico do petróleo refinado poderia ser reajustado.

Além disso, estabelecia que quando o preço do petróleo bruto no mercado internacional fosse inferior a US$ 80/bbl, o preço do petróleo refinado seria calculado de acordo com a taxa normal de lucro de processamento.

Quando fosse superior a US$ 80/bbl, a margem de lucro do processamento seria deduzida até que o preço do petróleo refinado fosse calculado com base no lucro zero de processamento.

Quando o preço fosse superior a US$ 130/bbl, de acordo com o princípio de levar em conta os interesses dos produtores e consumidores e manter o funcionamento estável da economia nacional, seriam adotadas políticas fiscais e tributárias adequadas para garantir a produção e o abastecimento de óleo refinado, e os preços da gasolina e do diesel em princípio não seriam elevados ou elevados menos.

Em 2013, o esquema de precificação de produtos refinados mudou novamente, permitindo que os preços do petróleo bruto fossem estabelecidos conjuntamente pela Sinopec e PetroChina, com base nas condições locais.

Os varejistas de serviços puderam definir seus próprios preços, desde que estivessem abaixo de um preço máximo estabelecido pela CNDR para cada província.

Em 2016, a CNDR emitiu documento com atualizações relativas à melhoria do mecanismo de formação de preços do petróleo refinado.

Este documento determinava a fixação de um limite inferior para regulação do preço do óleo refinado de US$ 40/bbl.

Assim, quando  o preço do petróleo bruto no mercado internacional fosse inferior a US$ 40/bbl, o valor não regulado dos preços do petróleo refinado seria totalmente incorporado às reservas de risco, depositadas em contas especiais, utilizadas com a aprovação do Estado.

Essas reservas são usadas, principalmente, na conservação de energia e redução de emissões, melhoria da qualidade do petróleo, garantia da segurança do abastecimento de petróleo, entre outros aspectos.

O documento “Medidas de Gestão de Preços do Petróleo” passou por diversos aprimoramentos até que chegou à versão atual, em que  os preços domésticos de produtos refinados estão ancorados nos preços internacionais do petróleo.

Dessa forma, o documento estipula que os preços domésticos da gasolina e do diesel são ajustados a cada 10 dias úteis de acordo com as alterações nos preços do petróleo bruto no mercado internacional, e o reajuste tem efeito às 24:00h do dia do reajuste em que o preço é liberado.

Quando a faixa de ajuste de preço for inferior a 50 yuans por tonelada (¥/t), nenhum ajuste é feito e será acumulado ou compensado no próximo ajuste de preço.

O documento também estipula preços diferenciados para diversas cidades e regiões, levando-se em conta as diferenças tributárias das províncias e regiões e de taxas de retorno das empresas.

O “período doloroso” de excesso de capacidade

Nos últimos anos, os produtos petrolíferos refinados do país enfrentaram o desafio do sério excesso de capacidade e a lucratividade das empresas de refino de petróleo diminuiu. Além disso, o mercado diminuiu e a concorrência no setor se intensificou.

Por muito tempo, PetroChina e Sinopec foram absolutamente dominantes na indústria de refino de petróleo, e o mercado de petróleo refinado também estava em uma situação de duas potências competindo pela hegemonia.

Com a implementação do “Aviso da Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma sobre Questões Relativas ao Uso e Gestão do Petróleo Bruto Importado”, as empresas locais independentes de refino de petróleo tornaram-se gradualmente maiores, e outras empresas centrais também entraram rapidamente na indústria de refino de petróleo.

Para o novo padrão de concorrência — entre as duas principais empresas de refino de petróleo e independentes –, formou-se um padrão básico de diversificação do corpo principal do mercado de petróleo refinado, que promoveu efetivamente o nível geral de concorrência na indústria e o nível geral de ambiente de consumo foi muito melhorado.

Empresas privadas representadas por Hengli, Rongsheng, Tongkun, Shenghong, etc., entraram no refino e na indústria química com a ajuda dos bons ventos da política do governo.

A abertura do mercado chinês para empresas de capital estrangeiro está em constante expansão, e gigantes petroquímicos internacionais como ExxonMobil, BASF e SABIC estão competindo ativamente no mercado petroquímico.

Grandes refinarias como Sinopec, PetroChina e Sinochem também estão acelerando a integração, transformação e modernização de seu refino e da petroquímica.

A tradicional indústria privada de refino e química acelera a integração, a transformação e a atualização de layout. A indústria de refino da China está no “período doloroso” de excesso de capacidade, causado pelos dividendos da política de liberalização do mercado.

A maior remodelação da história está chegando, e a transformação e modernização serão aceleradas no futuro para avançar em direção ao desenvolvimento de alta qualidade.

Embora haja grande quantidade de estudos analisando o primeiro mercado consumidor, os EUA, que adota viés mais liberal, para a China, em virtude da barreira linguística, que impacta a coleta de dados, o número de estudos é muito menor.

Assim, este artigo procura analisar o desempenho de mercados sobre condutas e estruturas diferenciadas. Ademais, em nível de desenvolvimento futuro, é mister avançar em modelos de quantificação para se avaliar ganhos e perdas de cada arranjo.

Esse desenvolvimento será tratado na continuidade do projeto de pesquisa e divulgado em artigos subsequentes.

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Luis Adolfo Beckstein é mestre em economia, pesquisador do Grupo de Economia da Energia e Regulação da UFF e consultor de investimentos estrangeiros.

Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado

Referências

AGÊNCIA INTERNACIONAL DE ENERGIA (AIE). World Energy Outlook 2022.

BAKER INSTITUTE. Disponível em: <bakerinstitute.org>.

BALDWIN, R; CAVE, M. e LODGE, M. The Oxford Handbook of Regulation. 2010.

COMITÊ NACIONAL DE DESENVOVIMENTO E REFORMA DA REPÚBLICA POPULAR DA CHINA (CNDR). Disponível em: <gov.cn>.

CONSELHO NACIONAL DE ENERGIA (CNE). Disponível em: <nea.gov.cn>.

DELOITTE. China gasoline retailing development trends report 2019. 2019.

DOWNS, E. The rise of China’s Independent refineries. Columbia SIPA – Centre on Global Energy Policy. 2017.

STIGLER, G. The Theory of Economic Regulation. The Theory of Economic Regulation. 1971.