A Lei 13.576, de 2017, dispõe sobre a Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), inspirada no Low Carbon Fuel Standard (LCFS) da Califórnia, para reduzir a intensidade de carbono da matriz de combustíveis e evitar as emissões dos gases de efeito estufa pela substituição de combustíveis fósseis por biocombustíveis.
A partir deste marco legal, foram estabelecidos os eixos da política com:
- Definição das metas compulsórias anuais de redução de emissões de gases do efeito estufa para a comercialização de combustíveis fósseis pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE);
- Desdobramento da meta compulsória anual em metas individuais para os distribuidores de combustíveis proporcionais à respectiva participação de mercado na comercialização de combustíveis fósseis no ano anterior;
- Certificação do processo produtivo dos produtores/importadores de biocombustíveis para emissão dos créditos de descarbonização, os chamados CBIOs, de acordo com sua eficiência energético-ambiental medida em gCO2eq/MJ;
- Emissão dos CBIOs pelos produtores/importadores de biocombustíveis em função de sua Nota de Eficiência Energético-Ambiental (NEEA) e do volume produzido/importado e comercializado; e
- Comercialização dos CBIOs no mercado de balcão organizado na B3, sendo o preço do CBIO formado de acordo com a oferta/demanda.
A Figura 1 sintetiza o funcionamento do RenovaBio.
Judicialização
Desde o início da exigência da obrigação por parte dos distribuidores, iniciou-se movimento de judicialização por parcela do segmento de distribuição com alegação de falhas no Programa.
O tema foi levado à apreciação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, assim, entendeu no MS 27.093/DF:
(…) Com efeito, extrai-se das informações carreadas aos autos a previsibilidade das metas anuais compulsórias de descarbonização e aquisição de CBIOS para o ano corrente, as quais já seriam conhecidas dos distribuidores de combustíveis desde a Resolução CNPE n. 5, de 5 de junho de 2018, enquanto as metas individuais desde março/2020, conforme Despacho da ANP 263, de 19/03/2020 (fls. 538/539 e 561/564).
Destarte, em juízo de prelibação, não vislumbro ilegalidade ou desproporcionalidade na divulgação da redução da meta anteriormente estabelecida no patamar de 50%, em razão da Pandemia do COVID-19 (de 28,7 milhões para 14,53 milhões de CBIOs), por meio do ato apontado como coator.
Em relação à alegada indisponibilidade de Créditos de Descarbonização (CBIOs) no mercado, a Nota Informativa dá conta de que, em novembro/2020, os créditos escriturados e disponíveis para aquisição na Bolsa de Valores já atingiram quase a totalidade da meta anual de 14,53 milhões (fls. 546 e 569).
Assim, à míngua de pressupostos autorizadores, notadamente o fumus boni iuris, impõe-se a rejeição do pleito de urgência.
Ante o exposto, INDEFIRO a liminar (grifos nossos).
Reconhecimento internacional
O RenovaBio foi apresentado no Diálogo de Alto Nível da ONU, como compromisso voluntário (Energy Compact) do Brasil, com o compromisso de reduzir a intensidade de carbono da matriz de combustíveis em 10% de 2018 até 2030 (Figura 2) e evitar as emissões acumuladas de 620 milhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente na atmosfera pela utilização de biocombustíveis de 2020 até 2030 (Figura 3) — link para o Energy Compact (Youtube).
Por esta submissão, o Brasil recebeu carta da ONU com agradecimento pela contribuição para atendimento do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 7 de Energia Acessível e Limpa (UDOP, 2021).
Principais demandas de alteração do RenovaBio
Araújo (2022), representante dos importadores independentes, apresenta, em apertada síntese, as principais propostas de alteração do RenovaBio, já trazidas pelo segmento de distribuição fundamentadas na queda da produção e venda de etanol hidratado de 2019 a 2021:
- Mudança da parte obrigada dos distribuidores para os produtores/importadores, pela dificuldade de alocar nos combustíveis fósseis os custos do programa, alinhando o RenovaBio ao modelo da Califórnia (LCFS – Low Carbon Fuel Standard);
- Ausência de mecanismos para obrigar investimentos na cadeia de biocombustíveis, gerando aumento de produção ou redução dos preços;
- Especulação anormal no mercado de CBIOs, causada por agentes que atuam tanto na produção quanto na distribuição de biocombustíveis.
Mudança da parte obrigada dos distribuidores para os produtores/importadores
A produção da Petrobras responde no caso do ciclo diesel — considerando os desinvestimentos nas refinarias RLAM, Reman e Lubnor — por 62% do mercado que, somados aos 27% de importações da Petrobras e de terceiros mais produção de outras empresas e 11% de biodiesel, atinge os 100% necessários para o abastecimento do mercado (LIMA E SILVA, 2022).
No caso do ciclo Otto (veículos leves) — também considerando os desinvestimentos da RLAM, Reman e Lubnor — a Petrobras representa 43% do mercado. Sendo 10% de importações da Petrobras e de terceiros e produção de outras empresas, 42% de etanol e 5% de GNV (LIMA E SILVA, 2022).
Desta forma, o poder de mercado do agente dominante do refino, para ser formadora de preços de combustíveis no País, será o mesmo para formar preço dos créditos de descarbonização (CBIOs), dada a concentração de mercado na empresa.
Assim, propor mudanças na parte obrigada neste cenário, em que a empresa mantém a capacidade de formar preços e não de ser tomadora de preços em mercado competitivo, pode causar distorções no RenovaBio.
Como a empresa pratica os mesmos preços para os combustíveis nas mesmas modalidades e pontos de entrega, a expectativa de quem defende esta medida é de que todos os distribuidores sejam afetados pelos custos dos CBIOs da mesma forma.
Ocorre que essa medida no atual cenário reduz a liquidez do CBIO com a concentração em poucos compradores, ao diminuir o volume de agentes que precisam comprar os CBIOs, e reduz a competição ao colocar os distribuidores com a mesma estrutura de custos.
Dessa forma, mantido o atual poder de mercado da Petrobras, deve-se manter a parte obrigada, como sendo os distribuidores, dada a maior pulverização do mercado de distribuição, quando comparado ao elo primário de fornecimento de derivados.
Ausência de mecanismos para obrigar investimentos na cadeia de biocombustíveis, gerando aumento de produção ou redução dos preços
O RenovaBio incentiva os produtores/importadores de biocombustíveis a investirem na eficiência energético-ambiental.
Quanto maior a nota de eficiência energético-ambiental e a biomassa certificada, menor o volume de biocombustível necessário para emitir 1 CBIO, que corresponde a 1 tonelada de dióxido de carbono equivalente evitada pela utilização de biocombustíveis em substituição aos combustíveis fósseis.
A título exemplificativo, comparando-se duas usinas hipotéticas certificadas no programa.
A Usina 1 possui fator para emissão de CBIOs para etanol anidro de 0,001476 tCO2eq/L e a Usina 2 possui fator de 0,000646 tCO2eq/L.
Logo, a Usina 1 precisa produzir e comercializar 678 litros de etanol anidro para emitir 1 CBIO e a Usina 2 precisa de volume muito maior de 1.548 litros.
Assim, considerando o preço do CBIO de 100 reais, a Usina 1 tem receita de R$ 0,15 por litro de etanol anidro comercializado e a Usina 2 de R$ 0,06 por litro.
Desta forma, fica demonstrado o incentivo econômico proporcionado pelo RenovaBio para que as Usinas busquem maior eficiência energético-ambiental de forma a aumentar a produção, reduzir emissões de gases do efeito estufa e, consequentemente, pelo maior controle de seus processos, reduzir os custos de produção dos biocombustíveis.
Especulação anormal no mercado de CBIOs
Para este ponto, cabe aperfeiçoamento no RenovaBio, com a inclusão do CBIO como valor mobiliário pela inclusão deste crédito de descarbonização no rol listado no artigo 2º, da Lei n° 6.385, de 7 de dezembro de 1976.
Atualmente, compete ao Comitê RenovaBio e ao Ministério de Minas e Energia (MME) acompanhar o mercado e estes órgãos dispõem de menos recursos e expertise do que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Essa inclusão como valor mobiliário resolveria a questão da natureza jurídica do CBIO; permitiria o desenvolvimento do mercado secundário em função de passar a ter fiscalização pela CVM com o consequente aumento da credibilidade do programa e, também, possibilitaria a identificação de movimentos de especulação anormais com maior agilidade.
Considerações Finais
O RenovaBio possui reconhecimento internacional pela ONU e as judicializações infrutíferas contra as metas e funcionamento do mercado de CBIOs fortaleceram a higidez do processo de constituição da política pública.
A redução da intensidade de carbono da matriz de combustíveis, como pretendido pelo RenovaBio, exige previsibilidade, continuidade da política pública e segurança para os investidores.
A mudança da parte obrigada para produtores/importadores de combustíveis deve ser avaliada com cautela em cenário de manutenção do poder de mercado do agente dominante, dada a capacidade deste agente ser formador de preços de combustíveis, assim como seria no preço dos CBIOs, reduzindo-se a liquidez.
Os incentivos econômicos pela geração de CBIOs para os produtores mais eficientes garantem os investimentos necessários para aumento da produção e redução de preços, não sendo necessárias alterações neste quesito.
A especulação anormal no mercado pode ser mais bem tratada com a inclusão dos CBIOs no rol de valores mobiliários e a regulação da CVM.
Referências
ARAÚJO, S. RenovaBio: aperfeiçoar para avançar. Disponível em <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/renovabio-aperfeicoar-para-avancar-02122022>. Acesso em 05/12/2022.
LIMA E SILVA, R. A verdade sobre o nível de produção das refinarias da Petrobras. Disponível em <https://eixos.com.br/a-verdade-sobre-o-nivel-de-producao-das-refinarias-da-petrobras-por-rodrigo-lima-e-silva/>. Acesso em 05/12/2022.
UDOP (União Nacional da Bioenergia). MME recebe carta da ONU em função dos compromissos assumidos no RenovaBio. Disponível em <https://www.udop.com.br/noticia/2021/12/09/mme-recebe-carta-da-onu-em-funcao-dos-compromissos-assumidos-no-renovabio.html>. Acesso em 05/12/2022.
UNIÃO DA INDÚSTRIA DE CANA-DE-AÇÚCAR E BIOENERGIA (ÚNICA). RenovaBio: funcionamento e impactos na produção de etanol. Apresentação, 2021.
Pietro Mendes é doutor em Tecnologia de Processos Químicos e Bioquímicos pela UFRJ, com estágio pós-doutoral na Beddie School of Business da Simon Fraser University (SFU); e Conselheiro da Associação de Engenharia Automotiva (AEA).
Foi Secretário-Adjunto de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis e Diretor de Biocombustíveis do Ministério de Minas e Energia (MME). É assessor da Presidência da Infra S.A. e servidor de carreira da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
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