Energia

A regulação do armazenamento de gás natural

A nova Lei do Gás atualizou as regras para a atividade de estocagem, uma possível nova solução para o mercado de gás natural

A regulação do armazenamento de gás natural. Na imagem: Visão de baixo pra cima de instalações em gasoduto da NTS, com tubulações metálicas em amarelo, e céu azul ao fundo (Foto: Divulgação NTS)
Instalações da NTS (Foto: Divulgação)

O mercado de gás natural brasileiro sempre teve como uma de suas principais características uma fina sincronia entre oferta e demanda, sendo a capacidade de armazenamento de gás natural insuficiente ou praticamente inexistente.

Apesar de algumas tentativas esparsas por parte de algumas empresas em desenvolver projetos de armazenamento de gás natural, nenhum foi desenvolvido até o momento.

Pode-se dizer que indústria brasileira de gás natural opera atualmente apenas com a flexibilidade ou “pulmão” dos gasodutos de transporte, terminais de regaseificação e outras instalações existentes.

Essa falta de capacidade de armazenamento gera diversas consequências prejudiciais ao desenvolvimento do mercado nacional como, por exemplo, a redução da flexibilidade operacional das infraestruturas que formam a cadeia do gás natural, em especial gasodutos de transporte, a maior volatilidade de preços em momentos de excesso/escassez de oferta e até mesmo riscos de desabastecimento.

Sensível a esta situação, a nova Lei do Gás e seu decreto regulamentador promoveram algumas mudanças importantes no segmento de armazenamento de gás natural com o objetivo de criar um ambiente regulatório mais favorável ao desenvolvimento dessa atividade no Brasil.

Neste artigo, buscaremos analisar de forma objetiva algumas dessas alterações.

Definição legal de acondicionamento e estocagem subterrânea

A legislação anterior já dividia a atividade de armazenamento de gás natural em duas modalidades, a saber: acondicionamento e estocagem.

A nova lei manteve esta divisão, mas alterou a definição legal de casa de uma delas com o objetivo de superar algumas dúvidas que as definições revogadas geravam nos agentes de mercado.

E esclareceu que o acondicionamento consiste no confinamento de gás natural em instalações artificiais em geral e com objetivos mais amplos de armazenamento, movimentação ou consumo (ao contrário da redação anterior que falava apenas em transporte e consumo).

Lei 11.909/2009 (revogada)

Acondicionamento de gás natural: confinamento de gás natural na forma gasosa, líquida ou sólida para o seu transporte ou consumo;

Nova Lei do Gás (14.134/2021)

Acondicionamento de gás natural: confinamento de gás natural na forma gasosa, líquida ou sólida em tanques ou outras instalações para o seu armazenamento, movimentação ou consumo;

Com relação à estocagem, a nova legislação alterou a definição de “estocagem” para “estocagem subterrânea” e esclareceu que esta atividade consiste no armazenamento de gás natural em formações geológicas em geral.

Nessa linha, o decreto regulamentador esclarece que a ANP poderá se articular com outras agências para a regulação do exercício da estocagem subterrânea de gás natural em formações geológicas diversas daquelas que produzem ou já produziram hidrocarbonetos.

Lei 11.909/2009 (revogada)

Estocagem de gás natural: armazenamento de gás natural em reservatórios naturais ou artificiais;

Nova Lei do Gás

Estocagem subterrânea de gás natural: armazenamento de gás natural em formações geológicas produtoras ou não de hidrocarbonetos;

Unificação do regime de autorização

A legislação anterior estabelecia dois regimes de outorga para o exercício da atividade de armazenamento de gás natural, a concessão e a autorização.

O regime de concessão precedida de licitação era adotado na hipótese de estocagem de gás em reservatórios de hidrocarbonetos devolvidos à União e em outras formações geológicas não produtoras de hidrocarbonetos.

O regime de autorização era adotado nos casos de projetos de estocagem de gás desenvolvidos por detentores de direitos de exploração e produção de petróleo e gás natural (concessão ou partilha), nos termos aprovados no âmbito do respectivo plano de desenvolvimento, bem como de projetos de acondicionamento de gás natural.

A nova legislação unificou o regime de autorização para todas as hipóteses de estocagem subterrânea e acondicionamento de gás natural, em linha com as diretrizes da resolução CNPE 03/2022, que determina a adoção de um modelo de outorga para tais atividades mais aderentes à dinâmica da indústria e que estimule o desenvolvimento de tais instalações.

Considerando que a nova Lei do Gás determina que a ANP deverá definir as formações geológicas e as regras para a outorga da autorização, espera-se que a ANP edite uma nova resolução sobre o tema.

Enquanto a agência não editar novas regras, dúvidas naturais em um período de transição devem persistir. Nesses casos, é possível a construção de soluções consensuais entre agentes regulados e ANP, em linha com o disposto no decreto regulamentador.

Vale frisar que o regime de autorização não deve ser visto como um regime necessariamente mais precário do que a concessão. Nesse sentido, a nova Lei do Gás prevê que a autorização somente será revogada nas hipóteses previstas na legislação.

Acesso de terceiros em instalações de estocagem subterrânea

Um fator relevante a ser considerado na estruturação de novos projetos de estocagem subterrânea é que a nova Lei do Gás determina expressamente que tais instalações estão sujeitas ao acesso regulado de terceiros.

O decreto regulamentador avançou para prever que a regulação sobre acesso de terceiros deverá observar critérios objetivos, transparentes e não discriminatórios, sendo que as tarifas referentes à contraprestação devida pelo terceiro ao titular da instalação em caso de acesso regulado serão aprovadas pela ANP.

Não obstante, a própria lei estabelece que a ANP poderá definir um período no qual o acesso de terceiros não será obrigatório, tendo em vista os investimentos realizados pelos agentes que viabilizaram sua implementação.

Perspectivas para a estocagem de gás natural

Conforme recente artigo publicado pela agência epbr sobre o tema, diversas empresas relevantes (Origem, Engie, Gas Bridge e NTS) já manifestaram interesse no desenvolvimento de projetos de estocagem subterrânea e acondicionamento de gás natural.

O artigo retrata bem algumas dificuldades de mercado como a aleatoriedade da demanda gerada pelas regras de despacho de termelétricas, que está associada à escassez hídrica, bem como diversas oportunidades como, por exemplo, proporcionar mais uma alternativa de destinação ao gás associado produzido no pré-sal e viabilizar o desenvolvimento da atividade de supridor de última instância.

As alterações promovidas pela nova Lei do Gás e seu decreto regulamentador no segmento de acondicionamento e estocagem subterrânea de gás natural ajudam a criar um cenário mais favorável ao desenvolvimento de projetos de armazenamento de gás natural.

No entanto, devem ser vistas como mais uma etapa importante de uma jornada mais longa, que ainda requer outros passos para ser vencida.

Nesse contexto, espera-se, por exemplo, que a ANP desenvolva com maior rapidez sua regulação sobre estocagem de gás e disponibilize ao mercado áreas nas quais poderão ser desenvolvidos projetos de estocagem de gás.

Por Felipe Boechem, com Andre Lemos, Pedro Vargas, Stephani Oliveira e Clara Nogueira, todos do escritório Lefosse.