Uma das alterações mais relevantes promovidas pela Lei 14.134/2021 (conhecida como a Nova Lei do Gás) foi a ressignificação do conceito de chamada pública e sua desvinculação com o procedimento de contratação de capacidade de transporte de gás natural.
Neste artigo, buscamos trazer mais luz a esta importante alteração e seus impactos para o novo mercado de gás, em especial seu potencial de promoção de investimentos no segmento de transporte.
A Nova Lei do Gás define chamada pública como “o procedimento, com garantia de acesso a todos os interessados, que tem por finalidade estimar a demanda efetiva por serviços de transporte de gás natural, na forma da regulação da ANP”.
Da simples leitura dessa definição fica evidente que a finalidade da chamada pública é estimar a demanda efetiva pelos serviços de transporte de gás natural, o que representa uma alteração significativa em comparação com a revogada Lei 11.909/2009.
Conforme ilustrado no quadro abaixo, a antiga lei do gás vinculava a chamada pública à contratação de capacidade em gasodutos de transporte.
Lei 11.909/2009
(Art. 1º, § 3º, VII)Procedimento, com garantia de acesso a todos os interessados, que tem por finalidade a contratação de capacidade de transporte em dutos existentes, a serem construídos ou ampliados
Lei 14.134/2021
(Art 3º, XI)O procedimento, com garantia de acesso a todos os interessados, que tem por finalidade estimar a demanda efetiva por serviços de transporte de gás natural, na forma da regulação da ANP
Desvinculação entre “chamada pública” e “contratação de capacidade”
A Nova Lei do Gás, portanto, desvinculou a realização de chamada pública do processo de contratação de capacidade. Em nenhuma passagem da Nova Lei do Gás e de seu Decreto Regulamentar é feita qualquer relação entre os conceitos de “chamada pública” e “contratação de capacidade”.
Esta desvinculação está em linha com os princípios do novo mercado de gás de simplificação dos processos de oferta de capacidade de transporte e de utilização de plataformas eletrônicas, assegurando transparência e tratamento não discriminatório aos potenciais carregadores.
No âmbito da Nova Lei do Gás, a realização de uma chamada pública está associada ao processo de outorga de autorização de atividade de transporte que contemple a construção ou ampliação de gasodutos, não havendo obrigatoriedade de chamada pública para contratação de capacidade em dutos existentes.
Considerando o interesse público sobre as atividades econômicas que compõem a indústria de gás natural e que os gasodutos de transporte são instalações com natureza de monopólio natural, estimar adequadamente a demanda pelos serviços de transporte de gás natural auxilia no dimensionamento eficiente da infraestrutura.
Simplificação do Procedimento de Chamada Pública
Nessa linha, a Nova Lei do Gás previu que “a outorga de autorização de atividade de transporte que contemple a construção ou ampliação de gasodutos será precedida de chamada pública, nos termos da regulamentação da ANP”.
A Nova Lei do Gás optou por não detalhar como o procedimento de chamada pública deveria ser estruturado, delegando esta tarefa à ANP.
Esta delegação é salutar, tendo em vista que a ANP é a agência reguladora setorial com especialização sobre o tema, possuindo capacidade técnica para analisar e propor uma solução adequada para cada tipo de situação.
Com objetivo de contribuir para os debates em torno da nova regulação sobre chamada pública, listamos abaixo alguns pontos que reputamos relevantes neste contexto:
Primeiro, a Nova Lei do Gás concedeu à ANP maior autonomia para regular o tema do que a antiga lei do gás.
A título exemplificativo, no regime anterior:
- (i) o Ministério de Minas e Energia (MME) deveria fixar as diretrizes do processo de chamada pública, visto que a finalidade da chamada pública na legislação anterior era a contratação de capacidade;
- (ii) a Portaria MME 472/2011 regulou em detalhe o processo de chamada pública para contratação de capacidades de transporte em gasodutos existentes, a serem construídos ou ampliados;
- e (iii) o revogado Decreto 7.832/2010 estabelecia que a ANP seria responsável por elaborar o edital da chamada pública.
Segundo, a finalidade da chamada pública é a estimativa de demanda efetiva pelos serviços de transporte de gás natural e não mais a contratação de capacidade, o que abre espaço para uma significativa simplificação do processo.
Esta simplificação também é consistente com o fato de a Nova Lei do Gás prever que os bens vinculados às atividades de transporte não são mais reversíveis nem passíveis de indenização em caso de não depreciação ou amortização.
No regime anterior, tais ativos eram considerados reversíveis e deveriam ser incorporados ao patrimônio da União ao fim da concessão mediante justa e prévia indenização, o que contribuía para um maior grau de intervenção estatal.
Terceiro, a ANP deve observar os princípios constitucionais da eficiência, razoabilidade e proporcionalidade ao regular a chamada pública.
Nessa linha, a Nova Lei do Gás alterou a Lei 9.478/1998 para prever que a ANP deve “regular, autorizar e fiscalizar o exercício da atividade de transporte de gás natural com vistas ao acesso não discriminatório à capacidade de transporte e à eficiência operacional e de investimentos”[1].
Adicionalmente, o Decreto 10.712/2021 reforçou a diretriz de celeridade e eficiência, estabelecendo que “o processo de outorga de autorização de atividade transporte deve ser realizado de forma célere e eficiente, assegurada a transparência aos usuários das instalações de transporte e à sociedade”.
Cabe, por oportuno, ressaltar que chamada pública não tem natureza de licitação, não lhe sendo aplicável a Lei 14.133/2021.
Quarto, a nova regulação deve ser adequada ao atual mercado de gás que vem migrando cada vez mais rumo a um mercado competitivo e com multiplicidade de agentes, o que significa um mercado cada vez mais eficiente. Agentes competidores tendem a monitorar o comportamento uns dos outros e do mercado em geral.
Portanto, continuar regulando um mercado competitivo da mesma forma que se regulava um mercado dominado por um único agente não é consistente com as melhores práticas de regulação.
Possibilidade de inexigência de chamada pública
Adicionalmente, em quinto lugar, a ANP deve identificar as situações nas quais uma chamada pública é exigível e estabelecer um procedimento adequado para cada situação, evitando assim procedimentos excessivamente burocráticos.
As Leis 13.874/2019, 13.848/2019 e o Decreto 10.411/2020, que tratam da análise de impacto regulatório, estabelecem que a ANP deve evitar o aumento de custos de transação sem demonstração de benefícios por meio da escolha da solução mais adequada ao problema regulatório identificado.
Nessa linha, a ANP tem até mesmo a opção de não exigir a chamada pública, o que deveria ser o caso em algumas situações como, por exemplo, aquelas em que:
- (i) o gasoduto de transporte é destinado ao atendimento da demanda específica de um consumidor ou grupo limitado de consumidores em determinada localidade;
- (ii) o gasoduto de transporte é destinado a conectar uma fonte de suprimento situada em uma localidade afastada de mercados consumidores ao sistema de transporte,
- ou (iii) já há estudos suficientes de demanda feitos pelo transportador, inclusive com uso de sua base de dados sobre eventuais sondagens de carregadores interessados em capacidade, pela EPE e outros agentes de mercado.
Vale destacar que a opção por não exigir a realização de chamada pública tem fundamento legal e tem paralelo em outras agências reguladoras que utilizam com sucesso a opção por não exigir determinado requisito legal ou regulatório em casos nos quais não se justifica sua atuação e adotam procedimentos mais simplificados para situações nas quais o risco ou impacto para o setor regulado é mais baixo.
Nesse sentido, é possível vislumbrar algumas medidas de simplificação como, por exemplo:
- (i) o fim da obrigatoriedade de edital de chamada pública;
- (ii) a utilização de meios eletrônicos para divulgação de oportunidades e avaliação da intenção de demanda do mercado que sejam passíveis de inspeção ou auditoria pela ANP ou terceiros por ela nomeados;
- e (iii) o fim da obrigatoriedade de que a chamada pública tenha necessariamente uma fase vinculante que resulte na celebração de um termo de compromisso ou contrato de transporte, permitindo que o transportador avalie, caso a caso, se será necessário a celebração de um instrumento vinculante com os carregadores interessados.
Simplificação não depende de revisão regulatória
Vale notar que a adoção de um procedimento simplificado ou a não exigência de realização de chamada pública não depende de revisão regulatória e já deveria ser implementado pela ANP, uma vez que o Decreto 10.712/2021 permite expressamente que a ANP adote soluções individuais que visem ao atendimento das diretrizes do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e da Nova Lei do Gás até que seja editada regulação específica pela agência.
Além disso, a regulação preexistente sobre chamadas públicas, em especial a Portaria MME 472/2011 e RANP 37/2013, não está mais plenamente consistente com as diretrizes da Lei 14.134/2021, do Decreto 10.712/2021 e da Resolução CNPE 3/2022, o que resultaria na revogação de todas as disposições da regulação preexistente consideradas incompatíveis com a nova legislação da indústria do gás natural.
Atenta a esta situação de inconsistência da regulação à nova legislação da indústria do gás natural, a ANP incluiu uma lista de normas sobre o tema na agenda regulatória da ANP para o biênio 2022-2023 e tem adotado posições mais alinhadas com as diretrizes do novo mercado de gás em casos concretos.
Isto posto, a ressignificação do conceito chamada pública promovida pela Nova Lei do Gás simplificou o processo de construção e ampliação de gasodutos de transporte, bem como forneceu as bases para um ambiente de contratação de capacidade mais líquido e dinâmico, contribuindo assim para a promoção de investimentos em infraestrutura e o desenvolvimento do mercado em geral.
Espera-se que a ANP siga na mesma direção, promovendo uma regulação ágil, flexível e eficiente no que se refere às chamadas públicas e implementando desde já soluções mais consistentes com o novo mercado de gás nos casos concretos apresentados à agência.
Referência
[1] Art. 8º, XXXIV da Lei 9.478/1997
Andre Lemos, Pedro Vargas, Stephani Oliveira são advogados da área de Petróleo e Gás do Lefosse; Clara Nogueira é assistente jurídica.
Este artigo expressa exclusivamente a posição dos autores e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculados.