O atual ciclo de alta de preços do petróleo e seus derivados traz à tona a tradicional discussão sobre os impactos econômicos da dependência do petróleo, sobretudo quando o atendimento da demanda ainda requer a importação de consideráveis montantes de combustíveis. A atual crise do diesel no Brasil é bastante ilustrativa desta problemática.
Adicionalmente, considerando as diretrizes em nível mundial de descarbonização do setor energético, ainda devem ser considerados os impactos ambientais do uso em larga escala de derivados de petróleo.
Por ter quase a totalidade de sua demanda energética atendida com base em combustíveis produzidos a partir do petróleo, o setor de transportes é especialmente sensível a choques de preços e apresenta dificuldades relevantes no uso de fontes renováveis de energia.
Neste contexto, justifica-se historicamente o fato de os biocombustíveis serem tidos como parte do processo de transição energética do setor de transportes. Entretanto, o uso em larga escala de biocombustíveis continua restrito.
Mais do que o consumo de biocombustíveis permanecer muito aquém do desejável, em anos recentes o interesse pela promoção de biocombustíveis foi arrefecido em função do início do processo de difusão de veículos elétricos e de questionamentos acerca da sustentabilidade dos processos de produção dos biocombustíveis.
No que tange às implicações da difusão de veículos elétricos, é preciso considerar que a aplicação desta solução pode apresentar limitações em alguns modais. Especificamente no segmento de veículos pesados, onde tipicamente são utilizados motores Ciclo Diesel, a opção pela eletrificação da frota pode não consistir na melhor alternativa.
Concomitantemente, a questão do uso da terra não pode ser examinada de forma generalista, pois os impactos dependem de diversos fatores, dentre os quais, o tipo da matéria prima utilizada, a produtividade agrícola da matéria prima e o tipo de terra — incluindo sua utilização anterior — onde a cultura da matéria prima do biocombustível será implementada.
Como ilustração de possível rota de uso de biomassa para fins energéticos em bases sustentáveis, pode ser mencionado o aproveitamento de matéria lignocelulósica advinda de resíduos agrícolas. A produção de etanol a partir do bagaço e da palha da cana-de-açúcar é uma típica iniciativa neste sentido.
Outro exemplo são as possibilidades de cultivos em áreas degradas, como por exemplo, o uso destas áreas para a produção de biodiesel a partir do óleo de palma.
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O uso não energético da biomassa
Em uma abordagem mais ampla, o uso sustentável da biomassa também deve contemplar produtos não energéticos de alto valor agregado. Considerando que a indústria química tem o petróleo como seu principal insumo, é notória a importância de as discussões acerca de investimentos em plantas de biocombustíveis trazer consigo o exame da produção de conjuntos de bens não energéticos capazes de agregar valor a toda cadeia.
Nestas bases, o conceito de biorrefinaria assume grande relevância por possibilitar o aproveitamento da biomassa, incluindo seus resíduos, através da conjugação de tecnologias eficientes e, desta forma, produzir bens energéticos, químicos e materiais.
Em nível mundial, é crescente o interesse na implementação de biorrefinarias. Todavia, o suprimento de matéria prima em bases sustentáveis e competitivas em muitos casos é um grande desafio. Mesmo quando a alternativa é o uso de resíduos agrários e florestais, a logística de disponibilização da oferta de biomassa na escala requerida por uma biorrefinaria tende a ser crítica.
No caso brasileiro, é notória a aptidão para produção de diversos tipos de biomassa passíveis de serem utilizadas em biorrefinarias em bases extremamente eficientes, como é o caso da cana-de-açúcar e das plantas oleoginosas.
Ademais, existem processos agroindustriais que geram expressivas quantidades de resíduos de biomassa, sendo o bagaço da cana encontrado nos pátios das usinas o exemplo mais emblemático. Observa-se assim que a disponibilidade de biomassa em bases eficientes e sustentáveis tende a ser um diferencial competitivo brasileiro.
Possibilidades promissoras
Logo, a questão central a ser examinada são as configurações tecnológicas mais promissoras em função de maturidade tecnológica, custos e potenciais mercados. Dentre as questões a serem analisadas, está a priorização entre a produção de biocombustíveis ou de produtos químicos de alto valor agregado.
Por exemplo, dado o crescente interesse na fermentação de recursos renováveis para a produção de cadeias de carbonos precursoras de produtos químicos, a produção de ácido succínico pode consistir em uma alternativa atrativa, pois se trata de um ácido precursor de químicos utilizados nas indústrias química, farmacêutica e de alimentos.
Outra possibilidade promissora para o caso brasileiro são biorrefinarias de biodiesel a partir de óleo de palma. Trata-se de empreendimentos que, além de biodiesel, são capazes de produzir biolubrificantes e até produtos para a indústria de cosméticos.
Portanto, é necessário que biorrefinarias estejam efetivamente presentes nas diretrizes brasileiras de política energética. Não apenas como meio de mitigar efeitos econômicos e ambientais do uso em larga escala de petróleo e seus derivados, como também de agregar valor para economia brasileira na medida em que o país apresenta condições para produzir químicos de alto valor agregado em bases competitivas e sustentáveis.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.
Guilherme Dantas é doutor e pós-doutor em Planejamento Energético pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e sócio-diretor da Essenz Soluções