Energia

As características da normativa estadual do Ceará para produção de hidrogênio verde

Transição energética precisa ser feita com justiça social e ambiental, promovendo a igualdade e a inclusão, escrevem Soraya Vanini Tupinambá e Júlio César Holanda Araújo

As características da normativa estadual para produção de hidrogênio verde do estado do Ceará. Na imagem, revoada de aves migratórias na reserva Cururupu (Foto: Danielle Paludoa/ICMBio)
Revoada de aves migratórias na reserva Cururupu (Foto: Danielle Paludoa/ICMBio)

Desde o Acordo de Paris, em 2015, cientistas do IPCC e especialistas do mundo inteiro têm alertado para o estado de emergência climática global e apresentado uma série de propostas para conter o avanço das alterações no clima.

Nesse cenário surge como uma das promissoras soluções para a transição energética, o hidrogênio verde.

Um dos elementos químicos mais abundantes do planeta que tem a propriedade de gerar energia, inclusive em quantidade maior do que a gasolina e pode ser produzido de diferentes formas, principalmente por meio de hidrocarbonetos, que são os principais vilões das emissões de gases de efeito estufa.

Contudo, o hidrogênio pode ser extraído através da quebra das moléculas de água (hidrólise), utilizando-se para isso energia elétrica a partir de fontes renováveis como solar e eólica, por isso o termo “verde” ou “sustentável”.

Para aprofundar

Há muito otimismo em torno do hidrogênio verde

Países como Austrália, Holanda, Alemanha, China, Arábia Saudita e Chile possuem megaprojetos instalados em seus territórios.

A União Europeia e várias empresas da indústria do petróleo ao redor do mundo tem anunciado o início ou interesse em projetos de hidrogênio verde.

Estima-se que a demanda por esta fonte superará a cifra de 90 milhões de toneladas produzida em 2020 para valores superiores a 200 milhões de toneladas em 2030.

O Brasil é projetado como um importante produtor e exportador de hidrogênio verde, graças a seus vastos recursos energéticos renováveis, ao potencial de capacidade instalável de energia solar e eólica, e pelo marco regulatório flexível e incentivos e isenções fiscais.

A estratégia de hidrogênio verde no Ceará, primeira iniciativa estadual do país, é uma experiência importante de ser monitorada, com a perspectiva de analisar eventuais acertos e equívocos, interpretando seus caminhos e contribuindo para ajustes e reconduções estratégicas no Estado e em outras unidades da federação.

No caso do Ceará, em fevereiro de 2022, foi aprovada a resolução nº 03, que dispõe sobre os procedimentos, critérios e parâmetros aplicáveis ao licenciamento ambiental no âmbito da Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) para empreendimentos de produção de hidrogênio verde no Estado do Ceará.

Impacto socioambiental

A normativa, que estabelece a Semace, como órgão competente para o licenciamento, reflete em grande medida a tentativa de dar partida e sustentação à estratégia estadual de produção do hidrogênio verde, diante de um vácuo ou insuficiente produção de iniciativas em âmbito federal.

Com relação a exigência de estudos ambientais para os empreendimentos que pretendem se instalar no Ceará, a resolução estabelece dois principais: o Relatório Ambiental Simplificado (RAS) para empreendimentos classificados como micro e pequeno porte, e o Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) para empreendimentos de porte médio, grande e excepcional.

Para todos os projetos, independente do porte, será exigido o Estudo de Análise de Risco, devidamente aprovado pela autoridade competente, como parte do estudo ambiental aplicado. As licenças prévia, de instalação e de operação também são exigidas pela normativa.

Uma importante salvaguarda conquistada no âmbito das discussões sobre a resolução foi a inclusão da necessidade de consulta prévia, livre e informada para as populações impactadas.

A sociedade civil, os povos indígenas e as comunidades costeiras e sertanejas tradicionais no Ceará vem historicamente levantando e denunciando vários casos de violações de direitos humanos, econômicos, sociais, ambientais e culturais acumulados ao longo da expansão da energia eólica continental no estado.

A consulta é um instrumento aplicado cada vez que são previstas medidas legislativas ou administrativas que afetem territórios e/ou modos de vida de indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais costeiras e sertanejas.

Outro aspecto relevante era a previsão inicial de instalação de unidades de produção de hidrogênio em formações dunares, planícies fluviais e de deflação, mangues e demais áreas úmidas que foi retirada a partir de consenso que considerou as observações da sociedade civil que alertavam que essa inserção colocaria o texto em desacordo com a nova política estadual de gerenciamento costeiro, assim como do Zoneamento Econômico Ecológico Costeiro.

Também havia previsão da produção de hidrogênio no bioma Mata Atlântica, zonas de amortecimento de Unidades de Conservação, em áreas utilizadas por aves migratórias ou onde ocorrem espécies ameaçadas de extinção e em locais em que viriam a gerar impactos socioculturais diretos implicando na inviabilização de comunidades ou sua completa remoção.

Todas essas áreas foram suprimidas na versão final, assegurando que os projetos não podem se instalar nelas, evitando riscos de degradação.

Podemos considerar que tivemos salvaguardas importantes do ponto de vista da justiça social e ambiental, sugestões encaminhadas por organizações da sociedade civil e acatadas na versão final da resolução do Coema.

Entretanto, alguns aspectos importantes ficaram de fora da normativa e que precisam ser visibilizados para posterior inclusão em novo regulamento. Um deles tem a ver com os recursos hídricos a serem utilizados na hidrólise da água para separação do hidrogênio e posterior produção do combustível.

Outro tema negligenciado na presente resolução trata do armazenamento e transporte do hidrogênio verde.

O Art. 9º, assegura que se o projeto contemplar as atividades de produção e armazenamento no mesmo local, ocorrerá o licenciamento ambiental em um único processo, observadas também as normas específicas vigentes de armazenamento.

Isso é importante, mas insuficiente, diante da complexidade e riscos relacionados ao manuseio e estocagem desse elemento químico. É importante que se estabeleça normativa específica sobre o assunto posteriormente.

Papel do nordeste na expansão da energia limpa

Os caminhos de implementação da produção de hidrogênio verde no Ceará ainda são muito incertos e abertos a diferentes oportunidades. Uma dessas possibilidades teria o potencial de acentuar a contribuição do Ceará para a descarbonização da economia mundial, nacional e regional, contribuindo efetivamente para o enfrentamento das mudanças climáticas.

Outra possibilidade, busca materializar o estado do Ceará e a região nordeste como áreas prioritárias para exportação de hidrogênio verde para estratégias de descarbonização do norte global, às expensas de vantagens locacionais do sul global.

O cenário é “otimista”, pois estamos diante de uma grande oportunidade para realizarmos a transição energética e substituir os combustíveis fósseis por fontes alternativas.

Contudo, contraditoriamente, um dos maiores riscos do hidrogênio verde no Brasil é aumentar consideravelmente a demanda por grandes projetos de energia eólica e solar na região nordeste, ampliando, consequentemente, os impactos socioambientais nos territórios e agravando a injustiça social e ambiental, em decorrência da forma com que esses projetos têm se instalado no país e em especial na região nordeste.

No estado do Ceará, por exemplo, estão em análise ambiental 17 novos projetos para geração concentrada de energia solar fotovoltaica, que já apresentam como justificativa atender a demanda futura da cadeia do hidrogênio.

A supressão da vegetação desses projetos somados é de quase 11 mil hectares de vegetação nativa do bioma caatinga, principal bioma da região e único exclusivamente brasileiro, fortemente ameaçado por conta das atividades industriais e desmatamento.

Os parques continentais eólicos (onshore), que no Ceará totalizam 105, também já contam com significativo histórico de violações de direitos das populações costeiras, degradação e supressão dos ecossistemas de dunas e manguezais.

Os conflitos socioambientais relacionados à energia renovável resultam da “imposição” dos projetos de energia eólica, solar etc. nos territórios sem compensação ou mitigação, muito menos diálogo e consulta prévia às comunidades locais.

É crescente o número de grupos sociais localizados em territórios próximos aos parques eólicos que denunciam que essas atividades geram impactos negativos aos ecossistemas e ao modo de vida local, além de agravar problemas sociais nas comunidades.

Chegada nos parques offshore

A grande novidade fica por conta da previsão da implantação de parques eólicos marinhos (offshore) nos próximos anos, que devem aumentar significativamente a geração de energia renovável.

Esses projetos estão previstos de serem instalados próximos à linha de costa, assegurando assim custos decrescentes de instalação face a baixas profundidades.

Ao tempo que possui enorme potencialidade de promover significativos impactos ambientais, seja à biodiversidade marinha e às pescarias, seja a sociodiversidade presente através de comunidades costeiras, que têm seus modos de vida e economias locais profundamente imbricadas com a integridade desse território marinho.

Com isso, pesca, agricultura, artesanato e turismo de base local são atividades econômicas que podem sucumbir frente a magnitude dos impactos socioambientais.

Em junho de 2022, haviam 55 projetos em fase de planificação no Brasil, e 11 destes no Ceará, sendo dois (projeto Caucaia e Dragão do Mar) em processo de licenciamento ambiental iniciado pelo Ibama.

Ao que tudo indica, o caminho trilhado pelos empresários do setor em articulação com o governo estadual busca converter o estado do Ceará em um exportador de hidrogênio verde em semelhança às demais commodities que caracterizam a exportação brasileira na atualidade.

Essa economia tem produzido um legado de degradação ambiental de biomas, ecossistemas e deterioração de modos de vida associados a estes. Contribuindo sobremaneira com as próprias mudanças climáticas que pretendiam enfrentar.

Dessa maneira, se assegura aos países do norte global uma descarbonização gradativa, com capacidade de permitir que conservem suas taxas de crescimento econômico, numa configuração de injustiça ambiental e climática aos moldes do que se denomina como colonialismo climático.

Cabe à sociedade levantar a estratégia alternativa de implementação do hidrogênio verde com soberania energética e potencial de termos uma matriz ainda mais renovável.

A transição energética precisa ser feita com justiça social e ambiental, promovendo a igualdade e a inclusão no sul, com democracia e participação popular, criando cadeias de abastecimento locais, indústrias e empregos verdes em países como o Brasil, e em especial no nordeste brasileiro.

A região tem grande potencial para geração de energias renováveis, principalmente eólica e solar, mas assegurando que essa produção esteja dissociada da degradação dos territórios, dos ecossistemas e das populações locais.

Júlio Holanda é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Ceará e possui mestrado em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ippur/UFRJ). Atualmente é professor de biologia da rede estadual do Ceará, consultor e pesquisador na área de ecologia política e justiça ambiental em projetos de clima e transição energética no Brasil.

Soraya Vanini Tupinambá é Engenheira de Pesca — UFC, Mestra em Desenvolvimento e Meio Ambiente — UFC, Mestra em Gestão de Áreas Litorâneas — UCA (Espanha), ativista da ecologia política e sócia fundadora do Instituto Terramar e integrante da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.