Energia

A transição energética digital e integrada

A digitalização é crucial também para a promover a descentralização dos sistemas energéticos -- e acelerar a transição, escrevem Emílio Matsumura e Nathalia Paes Leme

Usina solar do Ministério de Minas e Energia (Samuca Melo/PR)
Usina solar do Ministério de Minas e Energia (Samuca Melo/PR)

A digitalização pode ser conceituada como o processo da convergência do mundo físico para o mundo digital, ultrapassando a simples adoção de novas tecnologias e transformando nossas vidas em várias dimensões, em particular, a oferta e consumo de energia.

Esse processo se caracteriza como uma megatendência em que um número crescente de tecnologias digitais é inserido e disseminado pelos mais variados sistemas e infraestruturas, com grande potencial disruptivo para as estruturas organizacionais. Alguns exemplos são a internet das coisas (IoT), inteligência artificial (IA), big data, realidade virtual ou aumentada, blockchain e machine learning.

A digitalização está assentada em três elementos fundamentais: dados, análise e conectividade.

Cada vez mais, o mundo pode trabalhar com um volume de dados sem precedência (big data) que, com o uso de técnicas analíticas, produz informações cada vez mais complexas em tempo real, permitindo melhor compreensão do mundo ao nosso redor e conectando sistemas, máquinas e pessoas ao redor de todo o globo.

Sua importância para a transição energética está na multiplicidade de aplicações. Destacamos neste artigo três possibilidades que, a depender da sua evolução, moldarão de forma diferenciada o processo de transição energética no mundo: a incorporação dos recursos renováveis variáveis, a integração dos recursos energéticos distribuídos (RED) e o novo papel do consumidor.

Seja por conta da crescente participação de fontes renováveis variáveis, de novos agentes no setor ou da entrada de novas tecnologias, o setor elétrico vive a urgência de uma nova configuração preparada para lidar com escalas temporais cada vez menores, requerendo, com isso, maior automação do gerenciamento e monitoramento dos sistemas de transmissão e distribuição, além de melhor previsão da disponibilidade de recursos energéticos.

Por exemplo, a evolução de algoritmos e o big data permitem aprimoramentos nos modelos de previsão de disponibilidade dos recursos renováveis variáveis, levando a sua melhor utilização, reduzindo perdas e otimizando fluxos.

Digitalização e geração descentralizada

A digitalização é crucial também para a integração dos RED, promovendo a descentralização dos sistemas energéticos, com a redução de perdas e introduzindo fluxos multidirecionais de energia, novos arranjos comerciais e modelos de negócios.

A expansão dos RED, contudo, traz maior complexidade à operação do sistema, aumentando o grau de incerteza sobre a demanda energética e criando a necessidade de nova interface da geração, distribuição e transmissão. A tecnologia do blockchain pode ser o elemento integrador, com potencial de desenvolvimento de novos negócios para a comercialização de energia elétrica entre pares e com a distribuidora, dentro de (e com) uma comunidade.

Além disso, o blockchain pode ser usado também para a certificação de origem da fonte de energia, de maneira segura e automatizada, preponderante na construção de um mercado de carbono e na valoração dos serviços ambientais.

Em relação ao consumidor, a maior entrada de tecnologias digitais, como os medidores inteligentes, permitirá a transformação na sua relação com o setor de energia, passando a produzir e eventualmente comercializar sua própria energia. Sem dúvida, uma fração significativa do mercado consumidor com capacidade de autoatendimento torna a demanda energética de mais difícil previsão e, portanto, de operação mais intricada.

Tal situação requererá a utilização mais intensiva das tecnologias digitais e da análise de vastos conjuntos de dados e informações para permitir maiores capacidades preditiva e de resposta  tempestiva dos operadores de sistema.

Por outro lado, a digitalização também apresenta novos desafios, como riscos de cyberattacks, crimes cibernéticos, a democratização do acesso à tecnologia (com os “excluídos digitais”), entre outros.

Nesse sentido, o aprimoramento do marco regulatório, a modernização do desenho de mercado, uma legislação para garantir o uso responsável de tecnologias inteligentes, com melhor gerenciamento da segurança dos dados e privacidade e novas estruturas de governança para o mundo digital são fundamentais para se criar um ambiente com maior segurança energética e de informação.

Em resumo, a transformação digital do mundo permite maior conexão e interatividade entre a humanidade (e também com as máquinas), trazendo inúmeras oportunidades para diversos setores, influenciando o desenvolvimento global em todos os seus aspectos.

No caso do setor de energia, a digitalização é um dos vetores para a transição energética, cuja força motriz precisa ser direcionada para possibilitar um setor energético de múltiplos fluxos direcionais de energia, integrado, conectado e tendo como drivers fundamentais a inteligência dos dados e a baixa emissão de gases de efeito estufa.

Emílio Matsumura é diretor-executivo do Instituto E+ Transição Energética e professor do IBMEC/RJ.

Nathalia Paes Leme é mestranda em Planejamento Energético do PPE/COPPE/UFRJ e assessora de direção executiva do Instituto E+ Transição Energética.