Somos, ao tempo presente, um conjunto de lições e ensinamentos que moldam a nossa capacidade de pensar e refletir. Entre folclores populares, lições escolares e filosofia profunda, um velho clichê seguidamente repetido pela minha avó sempre me marcou: “a verdade é uma esfera”.
Este é um resumo do atual debate acerca do sistema energético brasileiro envolto em uma das piores crises de sua história, muitas versões em torno de poucos fatos. Gostaria de refletir sobre alguns.
Um problema estrutural exige uma solução integrada
Não é segredo a opção do Brasil no passado por uma matriz energética baseada em seus recursos hídricos. A abundância de uma fonte energética limpa, segura, barata e principalmente estocável tornavam a decisão óbvia.
Abusamos da nossa natureza privilegiada. O país se desenvolveu, nossa população cresceu e a vocação para celeiro do mundo aflorou em nossa economia. O recurso abundante tinha outros usos concorrentes. A baixa diversificação da matriz cobrou um preço.
Outra verdade veio à tona, o preço da energia se transformou em um dos principais gargalos de crescimento do país.
O combustível dos tão propagados voos de galinha. Com a baixa diversificação energética, tornamos nosso desenvolvimento econômico refém de variáveis incontroláveis, como, por exemplo, o regime de chuvas.
Um preço alto demais para um país do nosso porte econômico. A diversificação tornou-se mandatória e descobrimos nossa vocação também para uma matriz baseada em energias renováveis. Limpas e baratas como a água, porém não estocáveis.
Um terceiro fato emerge desta história. O Brasil migrará para uma matriz preponderante em energias renováveis. Temos os recursos e a mudança tem sentido ambiental, social e econômico.
Entretanto, o equilíbrio e sustentabilidade deste caminho escolhido depende da diversificação e integração com outras soluções energéticas. A escassez hídrica e a intermitência das energias renováveis exigem novas formas de estocagem de energia.
O gás natural é solução tão óbvia quanto a escolha pelas renováveis, mas narrativas distorcem fatos, o que nos leva ao nosso segundo ponto de reflexão.
Ruídos políticos nos afastam dos fatos
Não é de hoje que a Petrobras figura no centro do debate político, seja como raiz ou solução dos problemas. Faz parte do jogo. No entanto, o clamor social disfarça as mazelas mais profundas sob as quais deveriam se orientar as políticas públicas.
Isto torna-se ainda mais latente em um país em que a formação de preços esteve historicamente amarrada a políticas fomentadas pela empresa monopolista. Sendo ela uma estatal, também é natural a associação que o cidadão médio faz destas decisões com o ocupante do principal cargo político do país.
Mas, por trás das máscaras, há os fatos, e o Brasil, apesar de sua crescente produção bruta, é importador de gás natural e outros combustíveis. Sendo uma commodity dolarizada, o preço dos combustíveis está, sim, atrelado a decisões centrais do país.
Flutuações do câmbio e arcabouço fiscal e tributário dizem mais sobre o preço da energia do que a estratégia corporativa dos produtores. O cidadão médio está certo, pelos motivos errados. Em ano eleitoral, faz-se por bem corrigir esta distorção, até pelos riscos que se avizinham na nossa terceira reflexão.
Picos de preço de energia serão mais frequentes
O mundo optou por acelerar sua transição energética. Seja por necessidade, pressão social ou governamental, o investimento em combustíveis fósseis está declinando. A demanda nem tanto.
E, apesar do problema estrutural acerca das questões ambientais envolvidas, não houve a mínima integração pensada nas soluções propostas, frente principalmente às diferentes necessidades e à infraestrutura energética do mundo desenvolvido vs do mundo em desenvolvimento.
Adicionalmente, vêm da região com maior volume de importação de combustíveis o maior incremento de demanda por estes energéticos.
Afora a maior densidade populacional e o deslocamento de combustíveis mais poluentes como o carvão, o desenvolvimento de grandes economias asiáticas tem proporcionado a uma nova e pujante classe média acesso a confortos que, se comuns em países desenvolvidos, eram antes impensáveis no mundo em desenvolvimento, como por exemplo, o aquecimento durante o inverno.
A sazonalidade e a competição por fontes de gás e outros combustíveis se acirrarão. Uma infraestrutura robusta de armazenamento energético se faz fundamental para amortecer as grandes flutuações de preço projetadas, e isto nos leva ao quarto tópico.
Atalhos não necessariamente são os melhores caminhos
Entre os muitos avanços pautados no Congresso Nacional ao longo de 2021 visando a modernização do setor energético brasileiro, destacam-se a MP da Eletrobras e o a nova Lei do Gás, que, mesmo distintas, se cruzam em aspectos comuns, como por exemplo a reserva de 8GW para geração termelétrica a gás natural em localidades isoladas da malha de canalização, uma esfera com muitos lados de uma única verdade.
O argumento principal por trás da sustentação desta tese é um país em que 93% dos municípios não possuem acesso a gás canalizado, apesar de ser detentor de uma grandiosa reserva de gás natural nos campos marítimos do pré-sal.
Para unir oferta e demanda — solução óbvia — basta criar, por meio da geração termelétrica, a ancoragem necessária para justificar os elevados investimentos na infraestrutura associada.
Grandes reflexões emergem a partir deste atalho: sendo a energia um bem essencial, é justo a criação de uma reserva de mercado a geradores?!
Não é paradoxal encarecer o custo de energia para financiar a construção de uma rede de dutos com o intuito de baratear o custo da energia?!
Sendo a formação do preço da molécula de gás um conjunto de três fatores (preço/penalidades /flexibilidade), a ancoragem por geração termelétrica é, por si só, um caminho eficiente e suficiente para geração de competitividade?
Estas e tantas outras reflexões nos levam ao último tema deste texto.
O novo mercado de gás é uma pequena parte da solução
A última verdade que emerge das reflexões deste artigo é que o mundo caminha para uma gradual e cada vez mais intensa transição energética. O gás natural é o combustível estabilizador desta mudança.
Não resta ao Brasil alternativa, se não desenvolver um mercado competitivo e eficiente para utilização deste combustível.
O fim do monopólio e a abertura do mercado são uma pequena variável da equação que precisa ser somada a outras medidas para tornar possível um horizonte de energia competitiva no país por meio dos frutos desta transição, dos quais listem-se:
- Políticas públicas para o contínuo fomento de leilões de energia lastreados em capacidade e peak shaving baseados em gás natural, abrindo espaço adicional para novos investimentos em renováveis e suas intermitências. Cada 1MW investido em capacidade de gás natural liberam o investimento de 6MW em energia renovável, de acordo com estudo realizado pela Origem Energia;
- Atratividade de investimentos em infraestrutura associada de gás natural (dutos, processamento e armazenagem) para desenvolvimento de demanda sustentável a partir de oferta competitiva de molécula;
- Garantia de escoamento do gás produzido no pré-sal associado ao desenvolvimento da infraestrutura mencionada no tópico anterior para geração de competitividade para a molécula independente de ancoragem subsidiada;
- Interiorização do gás a partir da liquefação da molécula e corredores de escoamento virtuais para desenvolvimento de demanda e deslocamento de combustíveis menos eficientes;
- Construção de níveis e capacidade de estocagem de molécula suficientes para amortização das flutuações de preços internacionais;
Que em 2022 possamos continuar caminhando para a frente e aumentando esta lista.
Luiz Felipe Coutinho é CEO da Origem Energia.