O setor de gás natural brasileiro vive um momento decisivo de transição, em que abertura gradual do mercado, a entrada de novos agentes e a busca por maior eficiência colocam em evidência a importância de uma regulação técnica, transparente e previsível.
A consolidação de um mercado competitivo e sustentável, conforme estabelecido pela Lei nº 14.134/2021, depende não apenas de avanços a nível federal, mas também da qualidade dos processos conduzidos pelos estados.
Nesse cenário e face aos movimentos recentes de regulação nos estados, levantam-se grandes questionamentos sobre o futuro do mercado de gás no Brasil. Nos últimos meses, em diversos estados da federação, houve sinalizações ou aprovações de aumentos expressivos e desproporcionais nas margens de distribuição de gás natural, chegando na casa de 60%.
Esses reajustes, resultantes de processos de revisão tarifária estaduais, acendem um alerta sobre a sustentabilidade dos avanços obtidos desde o novo marco legal e colocam em risco o objetivo de redução do custo do insumo para o consumidor final — tanto cativo quanto livre.
Os processos de revisão tarifária são instrumentos legítimos, previstos nos contratos de concessão, mas tal condição depende de procedimentos adequados de participação social.
A simples formalização de uma revisão não garante, por si só, equilíbrio entre a justa remuneração ao prestador do serviço e a modicidade tarifária para o usuário.
Quando conduzidos de maneira apressada e sem diálogo efetivo, esses processos tendem a produzir distorções que prejudicam o consumidor e enfraquecem a competitividade do mercado.
Diversos estados têm cometido equívocos que comprometem a efetividade desses mecanismos.
Entre eles, destacam-se: (i) a adoção de revisões anuais, em vez de ciclos plurianuais, como já aplicado em algumas distribuidoras, e no segmento transporte e previsto nas melhores práticas também do setor elétrico; (ii) ausência de cronogramas prévios organizados para participação pública, impedindo o planejamento dos interessados; (iii) prazos desnecessariamente exíguos para as consultas públicas, muitas vezes inferiores a dez dias; e (iv) interferência das concessionárias nas decisões finais.
Essas práticas resultam em processos apenas formalmente abertos, mas materialmente fechados à contribuição qualificada.
Os exemplos se multiplicam. Apenas em 2025, estados como Pernambuco, Amazonas, Espírito Santo, Bahia, Alagoas, Ceará e Mato Grosso do Sul realizaram revisões tarifárias com aumentos substanciais da margem de distribuição mesmo em contextos de queda de demanda, contrariando a lógica econômica e aumentando a tarifa final para o consumidor final.
O resultado é um custo adicional anual em prejuízo do consumidor de cerca de R$ 0,6 bilhão, que onera o sistema e reduz os sinais econômicos que deveriam estimular eficiência e competitividade.
Estes aumentos são resultados de uma estrutura contratual e regulatória ultrapassada que restringe o desenvolvimento do mercado. Em Pernambuco, por exemplo, mais de 35% da margem bruta destina-se exclusivamente à remuneração do CAPEX e OPEX, que conta com uma taxa de remuneração líquida de 20%.
E no cálculo da margem considera-se apenas 80% da demanda estimada, perpetuando distorções em um cenário de retração do consumo.
Esses desequilíbrios se agravam diante de práticas regulatórias que limitam a participação social e o diálogo entre todas as partes interessadas.
Em vários estados, as consultas e, quando ocorrem, as audiências públicas, têm sido realizadas com prazos exíguos para contribuições — em muitos casos considerando prazos de nove a quinze dias corridos — o que é insuficiente para avaliar temas complexos, como as revisões tarifárias.
Casos recentes como as consultas públicas 04/2025 (Ceará), 05/2025 (Pernambuco) e 01/2025 (Amazonas) ilustram esse problema. A limitação temporal afasta contribuições qualificadas e compromete a legitimidade das decisões, violando os princípios de transparência, previsibilidade e qualidade técnica que caracterizam a boa regulação.
A Lei nº 13.848/2019, que disciplina o processo decisório das agências reguladoras federais, estabelece um prazo mínimo de 45 dias para consultas públicas — reconhecendo a participação social como elemento essencial de legitimidade e qualidade técnica.
Embora as agências estaduais não sejam obrigadas a seguir a norma federal à risca, seus princípios devem ser adotados por analogia como boas práticas. Um prazo de 45 dias, aliado a uma divulgação prévia e organizada, favorece o planejamento dos agentes, o aprofundamento das análises e o fortalecimento do debate público.
Mais do que cumprir uma formalidade, é preciso assegurar o propósito das consultas públicas: serem instrumentos de construção coletiva, e não meros protocolos administrativos.
Um procedimento célere é aquele que alia velocidade à eficiência e ao cumprimento de deveres técnicos; já a rapidez desprovida de método compromete resultados e gera decisões frágeis, sujeitas a revisões e judicializações futuras — o oposto da estabilidade e previsibilidade de que o setor precisa.
Outro problema que se tornou especialmente evidente e premente no último ano diz respeito à concentração, em um curto intervalo de tempo, de diversas consultas públicas em diferentes estados.
Nesse sentido, impõe-se a necessidade da criação de um calendário regulatório nacional que organize as consultas e audiências públicas promovidas por agências estaduais e federais ao longo do ano.
Tal medida traria previsibilidade, permitiria melhor alocação de recursos técnicos e evitaria sobreposição de processos. A transparência no cronograma fortaleceria a confiança institucional e a qualidade da regulação, beneficiando tanto o poder público quanto os agentes de mercado.
Por fim, importante ressaltar que a maturidade regulatória que o setor de gás natural demanda passa pela adoção de metodologias coerentes, prazos adequados e critérios transparentes.
A pressa — aqui entendida como falta de planejamento e não como celeridade — é inimiga da boa regulação. Em um mercado em transição, decisões apressadas, mal fundamentadas e sem diálogo social tendem a gerar desequilíbrios tarifários e desincentivar investimentos.
O papel dos estados na consolidação de um mercado de gás competitivo é inquestionável. Mas, para cumprir essa missão, é indispensável afastar práticas que, sob o pretexto de eficiência, enfraquecem os pilares da modicidade tarifária e da previsibilidade regulatória.
O amadurecimento do setor passa, necessariamente, por processos que combinem técnica, transparência e tempo adequado para o diálogo.
Por Sylvie D’Apote, Fernando Montera, André Alves e Daniela Santos, da diretoria Executiva de Gás Natural (IBP).
