Opinião

Seletivismo energético: energia solar nos telhados sob ataque, enquanto fósseis seguem com R$ 47 bi em incentivos

Fustiga-se o investimento privado que descarboniza e democratiza a geração de energia, ao mesmo tempo em que se preservam bilhões em incentivos aos combustíveis fósseis, escreve Heber Galarce

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Nesta terça-feira (28), o Congresso Nacional deve discutir a Medida Provisória 1.304, apresentada como um esforço de “modernização” do setor elétrico.

No entanto, o debate que se anuncia vai muito além da eficiência regulatória: na prática, a energia solar nos telhados — um dos maiores símbolos da transição energética feita pelo cidadão comum — tornou-se alvo de desconfiança e restrição, enquanto os combustíveis fósseis seguem amplamente subsidiados.

De acordo com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), o Brasil destina, em 2024, R$ 47,06 bilhões em incentivos e renúncias fiscais ao petróleo, gás natural e carvão mineral, ante R$ 18,55 bilhões para todas as fontes renováveis.

A relação é desproporcional: para cada R$ 1,00 investido em energia limpa, R$ 2,52 são canalizados aos fósseis. Dentro desse montante, a energia solar nos telhados — geração feita por famílias e pequenos negócios — aparece associada a R$ 11,6 bilhões, o que representa menos de um quarto do valor destinado aos combustíveis fósseis.

Mas há um detalhe que quase nunca é mencionado: esses R$ 11,6 bilhões são uma estimativa bruta, que não considera o conjunto de benefícios econômicos e sistêmicos proporcionados pela geração solar distribuída.

Essa energia, produzida próxima do consumo, reduz perdas na rede elétrica, adianta a transição energética sem custo orçamentário, adia investimentos em reforço de rede, diminui picos de demanda e gera empregos privados.

Quando se descontam esses fatores — ainda não contabilizados oficialmente —, o suposto “custo” líquido da energia solar tende a ser muito menor.

O próprio Inesc reconhece, em suas recomendações, a ausência de avaliações completas sobre o balanço líquido dos subsídios, lacuna que impede uma comparação justa entre fósseis e renováveis.

Ainda assim, é sobre a energia solar que recai o escrutínio político.

Discursos e emendas na MP 1.304 tratam o pequeno gerador como vilão das tarifas, ignorando que o mesmo estudo mostra queda de 42% nos subsídios fósseis entre 2023 e 2024, sem que isso tenha provocado explosão de preços.

Após a redução das desonerações sobre combustíveis, a gasolina subiu apenas 10%, o diesel 3% e o etanol 20% — variações normais de mercado. Ou seja, é possível reordenar incentivos sem punir o consumidor.

O que se vê, portanto, é uma espécie de seletivismo energético: fustiga-se o investimento privado que descarboniza e democratiza a geração de energia, ao mesmo tempo em que se preservam bilhões em incentivos aos combustíveis fósseis — justamente o setor que mais contribui para as emissões e para o desequilíbrio fiscal ambiental.

Não se trata de negar ajustes na regulação da geração distribuída, mas de reconhecer o óbvio: o peso fiscal dos fósseis é muito maior, e é lá que deveria começar qualquer esforço sério de “racionalização”.

A energia solar nos telhados representa autonomia, eficiência e investimento privado.

É o cidadão, não o Estado, quem financia a expansão dessa fonte. Punir esse movimento é penalizar a transição energética mais barata e descentralizada que o país já teve.

Se a meta da MP 1.304 é de fato corrigir distorções e equilibrar custos, a coerência exige começar onde o gasto é maior e o retorno é menor — nos R$ 47 bilhões ainda reservados aos fósseis.

O resto é, literalmente, cegueira energética.


Heber Galarce é Presidente do Instituto Nacional de Energia Limpa (Inel)

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