Opinião

Geração distribuída é uma realidade sem volta

Afirmar que GD é promessa vazia é uma falácia. Trata-se de um processo em curso que já transformou a matriz elétrica brasileira, escreve Sydney Ipiranga

Painéis solares fotovoltaicos para geração distribuída
Painéis solares fotovoltaicos para geração distribuída

O artigo Soteriologia no setor elétrico, publicado por este veículo no dia 26 de setembro, sustenta que a geração distribuída (GD) no Brasil se apoia em premissas frágeis, em estatísticas pouco robustas e em subsídios considerados iníquos.

Ao caracterizar a GD como uma espécie de “salvação” ilusória, o texto coloca em dúvida benefícios que vêm sendo reconhecidos em análises técnicas, acadêmicas e regulatórias.

Uma leitura cuidadosa dos dados e da legislação, no entanto, mostra que a GD não é uma promessa mística, mas uma realidade concreta de eficiência, sustentabilidade e democratização do setor elétrico.

Um dos pontos centrais do artigo é a crítica à Lei 14.300/2022, vista como uma concessão de “opulentas dádivas” aos investidores em GD. O que a lei efetivamente faz é oferecer segurança jurídica a quem apostou em um modelo previsto desde 2012, quando a Resolução 482 da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) criou as regras iniciais da micro e minigeração (MMGD).

Ao estabelecer um marco legal claro, a Lei 14.300 não cria privilégios arbitrários, mas garante previsibilidade para famílias, empresas e mesmo cooperativas que destinaram recursos próprios a um setor estratégico para a transição energética.

Esse tipo de estabilidade regulatória é, aliás, uma condição essencial para atrair investimentos em qualquer área de infraestrutura.

Outro ponto do texto diz que os benefícios associados à geração distribuída — como redução de perdas técnicas, alívio da rede em horários de pico e postergação de investimentos — não teriam comprovação estatística. Isso não é verdade.

Primeiro, porque a energia elétrica perde parte de sua potência ao ser transportada por longas distâncias nas linhas de transmissão e distribuição.  Como a GD gera energia perto do consumo (no telhado da casa, na empresa, em cooperativas locais), há menos deslocamento de energia pela rede — logo, menos perdas.

Além disso, a demanda elétrica do Brasil cresce muito durante o dia, principalmente no horário comercial, com ar-condicionado, iluminação e equipamentos ligados, e o pico de geração solar distribuída coincide em parte com esse aumento de demanda, ajudando a reduzir a pressão sobre a rede. 

Por fim, se parte da energia consumida localmente é gerada por GD, a distribuidora precisa reforçar menos a rede de distribuição e, em alguns casos, também a transmissão. Isso significa menor necessidade de obras de grande porte, como linhas e subestações, que são caras e levam anos para serem concluídas.

O artigo também classifica os mecanismos de incentivo como “subsídios iníquos”, sugerindo que a GD imporia custos indevidos a consumidores que não possuem sistemas próprios. Esse raciocínio é equivocado. 

A GD não recebe recursos do Tesouro nem transfere encargos diretos de um grupo para outro. O que existe é um incentivo regulatório, que tem prazo determinado para acabar e regras claras, e não um subsídio.

Ele foi criado pela Lei 14.300/22 e permite que quem instala energia solar pague apenas uma parte do uso da rede de distribuição até 2029, de forma gradual: começa com 15% e vai subindo até chegar a quase 100% no fim desse período.

Outra questão implícita na crítica é a de que a GD seria uma solução messiânica, vendida como resposta única para os desafios do setor. Essa visão é reducionista. Defensores da GD não a tratam como panaceia, mas como parte de um portfólio de soluções.

Grandes usinas hidrelétricas, parques solares centralizados, eólicas, armazenamento em baterias e modernização da rede são todos componentes complementares de uma matriz mais limpa, resiliente e diversificada.

A GD contribui nesse mosaico com características únicas: descentralização, participação ativa do consumidor, estímulo à inovação tecnológica e geração de empregos diretos e indiretos.

A retórica da “soteriologia” sugere que acreditar na GD seria um ato de fé. O que se vê na prática é que cerca de 20 milhões de brasileiros são beneficiados pelo modelo. A queda gradual dos custos dos painéis solares, a facilidade de financiamento e a questão regulatória transformaram a GD em uma opção competitiva e viável.

Trata-se de uma decisão de investimento que se paga ao longo do tempo, reduzindo a conta de energia e fortalecendo a autonomia do consumidor.

Para ficar em apenas um exemplo, e de um país que também tem dimensões continentais, na Austrália houve uma série de incentivos na instalação de geração distribuída nas residências, que progrediram para a colocação de sistemas de armazenamento doméstico, integrados com energia renovável.

Esse modelo desempenha um papel vital na estabilização do fornecimento de energia, um componente chave para a transição energética australiana.

O governo estadual da Austrália Ocidental, por exemplo, oferece subsídios de até AU$ 7.500 para a instalação de sistemas de armazenamento de energia em residências. Outros estados também oferecem descontos e empréstimos sem juros para painéis solares e baterias.

Além disso, o governo australiano lançou em julho deste ano o programa Cheaper Home Batteries, com incentivo federal para reduzir em cerca de 30% o custo de baterias domésticas.

Os dados indicam que, mantido o ritmo inicial de adesão, pode-se chegar à instalação de até 220.000 unidades domésticas de bateria já no primeiro ano. Eis um bom programa que poderia ser implantado no Brasil para atenuar as questões do impacto da geração distribuída nas redes de distribuição.

Portanto, afirmar que a GD é uma promessa vazia é uma falácia. Trata-se de um processo em curso que já transformou a matriz elétrica brasileira. E não se trata de uma salvação messiânica, mas de uma contribuição real à transição energética.

Em um país que precisa conciliar crescimento econômico, inclusão social e sustentabilidade, a geração distribuída não apenas é desejável, mas indispensável.

As distribuidoras brasileiras de energia parecem viver em uma redoma de vidro no século XX, agarradas a um modelo ultrapassado que já não responde às necessidades da sociedade.

Enquanto o mundo inteiro acelera a descentralização, a digitalização e o armazenamento, elas seguem apegadas à velha lógica do monopólio e da expansão de fios e postes, como se o futuro pudesse ser contido com concreto e transformadores. 

Ironia das ironias: são justamente elas que se queixam dos custos e dos impactos da geração distribuída, quando, na verdade, é sua inércia, seu corporativismo e sua recusa em modernizar o setor que travam a evolução da matriz elétrica nacional.

Ao insistirem em permanecer no século XX, as distribuidoras transformaram-se no verdadeiro gargalo do século XXI.


Sydney Ipiranga é diretor técnico da Associação Brasileira de Geração Distribuida (ABGD).

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