A transição energética europeia está vivendo dias conturbados. Nesta semana, duas cartas chegaram à Comissão Europeia com diagnósticos e propostas opostas para o futuro do hidrogênio verde — o combustível considerado peça-chave para descarbonizar setores difíceis de eletrificar, como siderurgia, aviação e transporte marítimo.
De um lado, oito dos principais fabricantes europeus de eletrolisadores — Bosch, Siemens Energy, Thyssenkrupp Nucera, Sunfire, Nel, Topsoe, John Cockerill e ITM Power — pedem mudanças urgentes no regulamento do RFNBO, que define os critérios de certificação do hidrogênio renovável.
O argumento central é que, com regras excessivamente rígidas, a indústria de eletrolisadores corre risco de desaparecer.
“Projetos estão próximos de tomar decisões finais — não de investimento, mas de cancelamento”, alertam os CEOs na carta.
Segundo o grupo, mais de 50 projetos foram cancelados nos últimos 18 meses.
“Sem ajustes, fábricas permanecerão ociosas e a Europa corre o risco de perder mais uma indústria tecnológica estratégica para concorrentes globais”, diz o documento.
Entre as propostas apresentadas, estão a extensão de isenções de adicionalidade até 2035 e a flexibilização da exigência de correlação temporal da eletricidade usada na eletrólise — hoje estabelecida em base horária.
“Se o hidrogênio RFNBO pretende alcançar escala significativa, as regras rígidas sobre adicionalidade e correlação precisam ser simplificadas. Se permanecerem inalteradas, apenas um punhado de pequenos projetos chegará à decisão final de investimento”, defendem.
A mesma agenda de flexibilidade é defendida por países europeus, como a Alemanha que, com a mudança de governo, deu uma reviravolta na sua estratégia de transição energética, apoiando inclusive o papel da geração nuclear e do gás natural.
Na direção contrária, quinze organizações e empresas globais de hidrogênio verde — entre elas ACME, Adani New Industries, Copenhagen Infrastructure Partners (CIP), CWP, Gentari, Green Hydrogen Organisation (GH2), Norwegian Hydrogen, Sembcorp e TES — pediram a Bruxelas que não ceda às pressões.
Para elas, enfraquecer as regras significaria minar a credibilidade climática e trazer mais riscos aos projetos que já avançaram pensando nas regras atuais.
“Após ampla consulta, os legisladores adotaram regras robustas e metas obrigatórias ambiciosas (…). Alterá-las agora desestabilizaria o mercado, congelaria investimentos e atrasaria a criação de empregos — retardando a disponibilidade de hidrogênio renovável para a indústria, a aviação e o transporte marítimo”, diz a carta.
As signatárias lembram que a avaliação de impacto das regras já está prevista para 2028, e que os obstáculos atuais estão mais ligados à inflação, ao alto custo de capital e à falta de demanda e infraestrutura do que às exigências regulatórias.
“A integridade ambiental importa”, resumem, pedindo que a Comissão mantenha firme a definição rigorosa de hidrogênio verde.
O que está em jogo
A disputa regulatória reflete interesses industriais.
Uma das teses para este embate é o receio dos fabricantes europeus de eletrolisadores, que temem ser ultrapassados por concorrentes globais, sobretudo chineses e indianos, que já avançam em tecnologias mais baratas e competitivas para grandes projetos.
A China, por exemplo, se prepara para o domínio da cadeia de hidrogênio verde, com o desenvolvimento de eletrolisadores, repetindo sua estratégia de sucesso na energia solar.
Já as companhias internacionais signatárias da carta pró-manutenção das regras, desenvolvem megaprojetos de hidrogênio verde em países emergentes com abundância de energia renovável barata — e que já atendem aos atuais critérios europeus — como Marrocos, Índia, Brasil e Austrália, todos com potencial de exportação para a Europa.
O portfólio da CWP, por exemplo, inclui oito hubs de hidrogênio verde na África, Austrália, América do Sul e América do Norte, totalizando 200 GW em geração renovável.
A CIP desenvolve o projeto “Chbika”, no Marrocos, com 1 GW de capacidade solar e eólica para produzir 200 mil toneladas anuais de amônia verde destinadas ao mercado europeu.
Na Índia, a Adani New Industries planeja o Mundra Green Hydrogen Hub, com produção estimada em 1 milhão de toneladas por ano.
Já a Sembcorp, em Singapura, possui uma joint venture com a petroleira estatal indiana BPCL para construir fábricas de amônia verde e explorar exportações ao Sudeste Asiático e à Europa.
O conselho da Green Hydrogen Organisation (GH2), uma das organização mais vocais no tema, conta com o CEO da australiana Fortescue, Andrew Forrest, o CEO da gigante chinesa Envision, Lei Zhang, e executivos de companhias coreanas como a Hyundai, e indianas, como a Gentari. Todas envolvidas em projetos de hidrogênio verde pelo mundo, inclusive no Brasil.
O pano de fundo político
A União Europeia se encontra em um dilema em que precisa, ao mesmo tempo, criar um mercado doméstico capaz de sustentar sua indústria de eletrolisadores e manter sua credibilidade como líder climática global.
Ao afrouxar as regras, corre o risco de ser acusada de greenwashing e perder confiança internacional. Ao mantê-las, pode assistir à fuga de investimentos e ao avanço de rivais externos.
Vale lembrar que no leilão de hidrogênio promovido pela UE para subsidiar a produção doméstica, projetos com eletrolisadores chineses foram barrados.
O resultado prático, por ora, é um impasse que beneficia os fósseis.
Enquanto segue a disputa narrativa sobre quem definirá os padrões do hidrogênio verde, carvão, petróleo e gás seguem garantindo espaço sob o argumento da “segurança energética” e de uma visão equivocada e perigosa de “adição energética”.