O gás liquefeito de petróleo (GLP) é parte essencial do dia a dia de mais de 97% dos lares brasileiros. Diante de tamanha capilaridade social e óbvio impacto econômico, a disciplina regulatória desse mercado não pode ser reduzida a um debate apenas concorrencial.
Estamos diante de um típico setor em que se entrelaçam princípios constitucionais de defesa do consumidor, de proteção à segurança pública e de preservação da confiança legítima na atuação estatal.
A recente proposta em debate na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), que cogita autorizar o enchimento fracionado de botijões e o envase de recipientes de outras marcas, parte de um diagnóstico correto: há concentração econômica relevante no setor de GLP, com margens expressivas e barreiras de entrada elevadas.
Todavia, o remédio desenhado parece equivocado. A flexibilização pretendida pode comprometer valores jurídicos que sustentam o arcabouço regulatório vigente e que já demonstraram ser amplamente eficazes na redução de riscos.
Até os anos 2000, o Brasil convivia com um mercado de GLP caracterizado por elevada sinistralidade. A ausência de clareza quanto à responsabilidade pelos recipientes — que circulavam sem requalificação há décadas — dificultava a imputação de responsabilidade civil e administrativa em casos de acidente.
A solução normativa encontrada foi a adoção do modelo de responsabilidade de marca: cada distribuidora responde juridicamente pelos vasilhames que circulam com sua identificação.
Esse modelo reduziu em mais de 50% a ocorrência de acidentes em dez anos, além de ter sido replicado em países vizinhos como Colômbia e Peru. Trata-se, portanto, de um exemplo de regulação que conciliou prevenção de risco, imputabilidade e eficiência econômica.
Alterar esse modelo com a autorização para enchimento fracionado ou para envase por terceiros representa um risco claro de diluição da responsabilidade civil e regulatória.
Em caso de sinistro, a quem imputar a obrigação de reparar? Ao pequeno ponto de enchimento, que dificilmente terá capacidade financeira ou técnica para responder? À distribuidora, cuja marca não estará necessariamente vinculada ao processo de envase?
Ou ao consumidor, parte hipossuficiente e incapaz de aferir as condições técnicas de seu botijão? A insegurança jurídica decorrente dessa fragmentação fragiliza o sistema e ameaça justamente o sujeito que deveria estar no centro da proteção estatal: o consumidor.
A esse problema soma-se outro igualmente relevante: a fiscalização. O modelo de responsabilidade de marca, em vigor há mais de duas décadas, permitiu que a ANP concentrasse sua atuação em um número reduzido de bases de enchimento, mais estruturadas e ligadas diretamente às distribuidoras.
Esse arranjo, embora não perfeito, produziu algum grau de efetividade regulatória, contribuindo para reduzir acidentes e dar mais segurança ao consumidor. A eventual pulverização da atividade de envase em centenas ou milhares de pequenos pontos — postos de combustíveis, caminhões ou bases menores — imporia uma carga fiscalizatória para a qual a agência, realisticamente, não dispõe de meios.
Trata-se de uma constatação prática, não de uma crítica: o corpo técnico da ANP é reconhecido pela sua qualificação, mas enfrenta limitações de recursos e capilaridade.
Nesse cenário, a promessa de reforçar a concorrência corre o risco de ser anulada pela incapacidade de supervisionar requisitos técnicos complexos, como inspeções visuais, verificação de prazos de requalificação ou sistemas para evitar sobreenchimento.
O resultado provável é que, mesmo com a melhor das intenções, esse modelo se tornaria de difícil execução, abrindo espaço para práticas inseguras e comprometendo a confiança do consumidor.
É inegável que, em um primeiro momento, tais medidas gerariam um impacto pontual nos preços ao consumidor, ao menos a curto prazo. Mas esse alívio viria às custas do próprio consumidor residencial, que sem perceber objetivamente passaria a estar exposto a novos riscos de segurança, sem garantia de qualidade no produto entregue.
Concorrência não pode ser medida apenas pelo número de agentes no mercado: só é legítima quando é saudável, isto é, quando entrega ao consumidor um produto de qualidade, seguro e a preços competitivos.
O desafio da ANP não é, portanto, ignorar a necessidade de abrir espaço para novos entrantes e reduzir barreiras de entrada, mas encontrar caminhos que façam isso sem desmontar o arcabouço de segurança construído ao longo das últimas décadas.
Há alternativas possíveis: maior transparência sobre margens e custos, incentivo a modelos de destroca mais eficientes, sandbox regulatórios para testar inovações de forma controlada e reforço da fiscalização sobre a requalificação dos vasilhames.
Essas são medidas que podem ampliar a competitividade do mercado sem comprometer a segurança pública.
Em suma, o diagnóstico de que o setor de GLP carece de mais concorrência é correto. Mas o remédio prescrito pode, paradoxalmente, piorar a saúde do paciente.
Do ponto de vista jurídico-regulatório, não há como sacrificar a segurança do consumidor e a clareza do modelo de identificação de responsabilidades em nome de uma promessa de redução de preços imediata e sem garantias de sustentabilidade.
O consumidor brasileiro merece pagar menos, mas merece sobretudo a tranquilidade de que o botijão que está em sua casa foi envasado dentro dos melhores padrões de segurança e por agentes passíveis de responsabilização. O desafio está posto, compatibilizar a concorrência com o interesse público.
Alexandre B. Calmon é sócio fundador do Costa Rodrigues Advogados (COSRO).