“Biocombustíveis ou mobilidade elétrica”: reflexões sobre o posicionamento brasileiro no contexto das mudanças do clima

Artigo por Carolina Grangeia e Luan Santos

“Biocombustíveis ou mobilidade elétrica”: reflexões sobre o posicionamento brasileiro no contexto das mudanças do clima

Durante a 21ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 21), a Declaração de Paris sobre Mobilidade Elétrica e Alterações Climáticas e o Chamado para Ação (Paris Declaration on Electro-Mobility and Climate Change & Call to Action) definiu o objetivo global de atingir 100 milhões de veículos elétricos (VE) e 400 milhões de veículos de duas ou três rodas até 2030.

Para tanto, diversos países estabeleceram metas nacionais de implementação de veículos elétricos, integrando suas políticas de mobilidade de baixo carbono [1].

Cenário Internacional

De acordo com dados da International Energy Agency (IEA), o estoque global de veículos elétricos leves no mundo era de 10 milhões de unidades até o final de 2020, com um aumento de 43% de registros em relação ao ano anterior, mesmo com a desaceleração econômica causada pela pandemia.

Além disso, os registros de ônibus e caminhões elétricos alcançaram estoques globais na ordem de 600 mil e 31 mil, respectivamente. Isso se deve principalmente a três principais pilares:

  • i) estrutura regulatória de apoio à VEs existentes antes da pandemia, na qual muitos países já haviam assumido compromissos para banir a venda de veículos convencionais ou determinado novos padrões de emissão de CO2, políticas de subsídio e para veículos de emissão zero (ZEV);
  • ii) incentivos adicionais para salvaguardar a venda de VEs em meio à crise, como aumento de subsídios de compra ou continuidade de políticas de subsídios que iriam ser eliminados em 2020; iii) expansão do número de modelos de veículos elétricos, assim como a redução dos custos de bateria [2].

A Europa registrou 1,4 milhões de novos veículos elétricos em 2020, ultrapassando a China pela primeira vez, com 1,2 milhões. Os Estados Unidos (EUA) registraram 295.000.

Com isso, cerca de 45% desta frota mundial se localiza na China (3,5 milhões de unidades à bateria e 1 milhão de unidades híbridas plug-in), 32% na Europa (1,8 milhões e 1,4 milhões, respectivamente, com destaque para a Noruega e Holanda) e 17% nos Estados Unidos (1,1 milhão de unidades à bateria e 600 mil unidades híbridas plug-in) [2].

A Cúpula dos Líderes sobre o Clima

Entre os dias 22 e 23 de abril de 2021, o presidente dos EUA, Joe Biden, reuniu 40 líderes mundiais na Cúpula dos Líderes sobre o Clima (do inglês, Leaders Summit on Climate).

Com isso, demonstrou em seus primeiros 100 dias de mandato o retorno do compromisso norte-americano em liderar os esforços globais para reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE), enviando uma mensagem encorajadora para os demais países ao redor do mundo [3].

Durante o evento, foi possível observar governos de diversos países – entre eles Estados Unidos, China, Japão, Canadá e União Europeia – anunciando novos compromissos e reforçando os já existentes, para redução de suas emissões nos próximos anos e décadas [3].

Entre os assuntos mais comentados estão a precificação de carbono e a eletrificação do setor de transportes; muitos países apostam em volumosos investimentos em eletromobilidade e demonstram grande expectativa de se discutir a cooperação internacional no cerne da transação de emissões de carbono durante a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 26), que ocorrerá em Glasgow no mês de novembro deste ano [4].

Além dos países, diversos fabricantes de veículos vêm anunciando planos de eletrificação cada vez mais ambiciosos. Dentre os 20 maiores fabricantes do mundo, 18 declararam planos para ampliar seu portfólio de modelos e aumentar a produção de VE leves.

A disponibilidade de modelos de veículos elétricos pesados ​​também está se ampliando, com quatro grandes fabricantes de caminhões indicando um futuro totalmente elétrico.

Atualizamos a Figura 1 que sintetiza as principais metas anunciadas para a redução de emissões por países e fabricantes ao redor do mundo, além das metas voltadas à mobilidade elétrica [2; 5].

Figura 1: Marco futuro da tecnologia de veículos elétricos
[clique para ampliar]

“Biocombustíveis ou mobilidade elétrica” Figura 1

Fonte: Adaptado de L.E.K. (2018), IEA global EV outlook (2021), whitehouse.gov, Leaders Summit on Climate. Nota 1: Apenas países que têm metas de eletrificação ou proibição de motor movido à combustão interna (ICE), e políticas de zero emissão em lei ou propostas de legislação foram incluídos.

A Experiência Latino-americana

Para além dos países supracitados, a América Latina também vem se posicionando frente à transição energética com metas para veículos elétricos, à exemplo do Chile e da Colômbia.

O primeiro, que possui a segunda frota de ônibus elétricos do mundo, atrás apenas da China, vem instituindo políticas de eletromobilidade inicialmente voltadas ao transporte público coletivo e taxis, como o “Meu Programa de Táxi Elétrico”, que fornece o cofinanciamento no valor de até U$ 11.000 para que proprietários de táxis convencionais troquem seus veículos por táxis BYD 100% elétricos [6; 7].

Já a Colômbia poderá contar com apoio de um programa desenvolvido pela Agência Francesa de Desenvolvimento (AfD) em parceria com a Agência Alemã de Cooperação Internacional (GIZ), Proparco e o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) para o desenvolvimento do projeto E-motion, cuja proposta é acelerar a implantação de veículos elétricos na América Latina, mobilizando cerca de 914 milhões de euros em financiamento de frota e infraestrutura para carregamento de veículos elétricos de uso intensivo (ônibus, taxi, e veículos comerciais leves) [8].

Ainda, tanto o Chile quanto a Colômbia contam com apoio da Aliança Zebra – Zero-Emission Bus Rapid-deployment Accelerator, criada em 2018 por um grupo de investidores e fabricantes que assumiram o compromisso de trazer novos produtos e financiar o aumento da frota de ônibus zero emissão na América Latina, contemplando também países como Brasil e México [6].

O Caso Brasileiro

Neste contexto, o Brasil é peça fundamental para as discussões dos mecanismos previstos no artigo 6º do Acordo de Paris e possui um papel estratégico na transição global relacionada à mobilidade elétrica, visto que é um dos principais mercados automotivos do mundo [11].

Ainda, estudos indicam diferentes cenários de perda de relevância e pico da produção do petróleo e uso de derivados, a curto prazo [12], e cada vez mais se discute a migração de refinarias para biorrefinarias, e tecnologias mais avançadas de eletrificação e infraestrutura [13].

Na Cúpula dos Líderes sobre o Clima, o Brasil se comprometeu a atingir a neutralidade climática em 2050, e acabar com o desmatamento ilegal até 2030, dobrando os recursos para fiscalização do desmatamento.

Ainda, pontuou a relevância dos mercados de carbono e exaltou a produção nacional de biocombustíveis como fundamentais para a despoluição dos centros urbanos. Porém, indo na contramão de diversos países, não anunciou metas ou incentivos aos VEs neste encontro [14].

De fato, nota-se que a transição para a mobilidade elétrica no Brasil ainda se dá de forma lenta, principalmente devido ao destaque e avanços da rota tecnológica dos biocombustíveis, que tradicionalmente vem se destacando desde o Programa Nacional do Álcool (PROALCOOL), na década de 1970, até a atual Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio) [15].

No entanto, a pressão de diversos países, e a reestruturação do modelo de negócios das principais fabricantes de veículos do mundo gera um apelo para a reformulação das políticas nacionais de incentivo à veículos e mobilidade.

Desafios… ou Oportunidades?

Na conjuntura da pandemia da COVID-19, as medidas de isolamento e incertezas na venda de combustíveis, somam-se às oscilações no preço do barril de petróleo e nos preços bomba.

Além disso, a queda da demanda no país gerou fragilidades no setor de transportes, como mudanças de hábito da população que enxerga o transporte público como possível vetor de contaminação, dificuldades financeiras das empresas operadoras devido aos corte de custos, rearranjos operacionais, mudanças tarifárias, desequilíbrio econômico e financeiro das prefeituras, oscilações de preço dos veículos, incertezas políticas, bem como a postergação ou suspensão de investimentos [11].

Contudo, é possível identificar oportunidades para a mobilidade elétrica no Brasil, como a concepção e rearranjo das operações de transportes, considerando um modelo de negócios contemporâneo.

Este período reforçou a necessidade de priorização do transporte público, serviço essencial, e incentivou a micromobilidade, que, apesar dos valores mais altos das bicicletas e scooters devido à oscilação cambial, são vistos como alternativas que não envolvem aglomerações e facilitam os serviços de entrega e delivery, que cresceram nas cidades.

Ainda, foi possível observar uma redução da poluição atmosférica local e da emissão de GEE nos grandes centros urbanos, de modo que os VE podem contribuir para a manutenção desta qualidade ambiental, colaborando com o portfólio de medidas mitigadoras [11].

Por fim, as recentes discussões acerca das políticas tributárias e tarifárias que envolvem os preços do combustível veicular e suas drásticas oscilações, vêm trazendo insatisfações ao consumidor, assim, os veículos elétricos, apesar de também oscilarem neste período, seriam mais uma alternativa [16].

Indústria Automobilística Nacional e o Programa Combustível do Futuro

Ao olhar para a indústria automobilística nacional, nota-se que o Brasil possui os atores e as condições necessárias para a formação de um complexo automobilístico voltado aos veículos elétricos, porém há um descolamento entre essas duas partes, bem como incentivos e políticas governamentais pontuais e pouco representativas [17].

Neste sentido, a Resolução Normativa Nº 819/2018, que estabelece procedimentos e condições para a recarga de veículos elétricos por interessados na prestação desse serviço (distribuidoras, postos de combustíveis, shopping centers ou empreendedores), impulsionou projetos estratégicos, como o  P&D Nº 22: “Desenvolvimento de Soluções em Mobilidade Elétrica Eficiente”, da ANEEL, no qual 30 projetos de inovação no setor elétrico foram aprovados [18].

Ainda, tanto a Aliança Zebra quanto o programa E-motion demonstraram interesse em incentivar a indústria no Brasil, porém, para este último, o Ministério de Minas e Energia (MME) fez ressalvas, posicionando-se favoravelmente desde que o programa não interfira no planejamento energético nacional que prioriza os biocombustíveis (etanol, biodiesel e novos combustíveis) [19].

Como resultado desta opção, o Governo Federal lançou o Programa Combustível do Futuro, com intuito de trazer novas diretrizes para avaliação do ciclo de vida (ACV) dos combustíveis, incentivos à pesquisa e desenvolvimento, e a indicação das rotas tecnológicas que o país pretende seguir para descarbonização da matriz de transportes.

Além disso, segundo o MME,  o programa busca integrar políticas públicas relacionadas ao setor automotivo e de combustíveis, como a Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), o Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel, Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (PROCONVE), Programa Rota 2030, Programa Brasileiro de Etiquetagem Veicular e o CONPET (selo de eficiência energética) [20].

Destaca-se no ciclo Diesel, o estudo para implementação de corredores verdes para abastecimento de veículos movidos a biometano, gás natural, GNL, diesel verde, biodiesel e demais combustíveis sintéticos.

Já no ciclo Otto (gasolina e etanol), a proposta é estudar combustíveis com alta octanagem e baixa emissão de carbono, promover o uso do etanol de segunda geração e incentivar a célula combustível a etanol [20].

Portanto, observa-se uma ampla movimentação para a continuidade do protagonismo brasileiro na produção e uso de biocombustíveis, e uma tímida participação da eletromobilidade no programa, representada pela promessa de incentivos a tecnologias híbridas.

Considerações Finais

Em razão da extrema urgência sobre a agenda ambiental e sobre os planos de recuperação pós-pandemia, o mundo parou para ouvir os compromissos de 40 líderes mundiais, mediados pelo presidente norte-americano Joe Biden na Cúpula dos Líderes sobre o Clima.

Destacaram-se neste evento a importância dos mercados de carbono e os vastos investimentos em eletromobilidade. Entretanto, o Brasil não apresentou medidas concretas, reforçando seu posicionamento sobre o avanço na produção e uso de biocombustíveis.

Vale pontuar que o Brasil é um dos pioneiros no setor de bioenergia, no entanto as pressões mundiais regidas por metas de eletrificação de outros países e o redirecionamento estratégico das maiores fabricantes de veículos geram preocupações sobre um possível isolamento da cadeia produtiva nacional frente a um mercado global  onde os veículos elétricos predominam.

Por muito tempo, o mercado de VEs no Brasil teve um papel marginal na composição de ações e políticas, seja no âmbito governamental, institucional ou do setor privado.

Existe uma forte discussão do modelo a ser implementado inicialmente, que envolve o público a ser atingido, os custos e quais modelos (veículos leves ou pesados) seriam mais eficientes à realidade brasileira.

Ainda, há muito o que fazer em relação às adequações do planejamento urbano, como infraestrutura de recarga e gerenciamento de resíduos, como baterias.

Logo, visando principalmente à melhoria da posição competitiva da indústria automotiva nacional, é preciso o aprofundamento em estudos de viabilidade técnico-econômica, aspectos normativos e regulatórios, formulação de arcabouço jurídico e modelo de negócios e de financiamento, rearranjo da cadeia produtiva e aperfeiçoamento tecnológico.

Assim, é importante uma agenda que incorpore cada vez mais tecnologias de propulsão eficientes e limpas, auxiliando na construção de modelos que deem escala ao mercado de VEs e que fomentem uma competição e cooperação saudável com biocombustíveis e suas rotas tecnológicas, identificando oportunidades inovadoras de coexistência dentro da cadeia produtiva, gerando facilidades e oferecendo novas escolhas para o consumidor brasileiro.

Carolina Grangeia ([email protected]) é doutoranda do Programa de Engenharia de Produção (PEP/COPPE/UFRJ) e Mestre em Engenharia Urbana e Ambiental (PUC-Rio e Technische Universität Braunschweig).

Luan Santos ([email protected]) é professor do PEP/COPPE/UFRJ e Head of Research da Brazilian Research Alliance for Sustainable Finance and Investment (BRASFI). Pós-doutor em Economia da Mudança do Clima e do Meio Ambiente (Universität Graz, Áustria).

Referências

[1] https://unfccc.int/media/521376/paris-electro-mobility-declaration.pdf

[2] https://www.iea.org/reports/global-ev-outlook-2021

[3] https://www.iea.org/commentaries/my-message-to-the-leaders-at-the-climate-summit-we-need-real-change-in-the-real-world

[4] https://www.state.gov/leaders-summit-on-climate/

[5] e-mpotionom/insights/ei/critical-steps-toward-electric-vehicle-adoption

[6] https://eixos.com.br/eletrificacao-do-transporte-coletivo-ja-e-viavel-economicamente-afirma-executivo-da-enel-x/

[7] https://www.byd.ind.br/chile-lanca-programa-para-renovacao-de-taxis-convencionais-para-50-taxis-eletricos-byd/

[8] https://eixos.com.br/e-motion-programa-tenta-acelerar-a-eletromobilidade-na-america-latina/

[9] https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2021/04/23/leaders-summit-on-climate-summary-of-proceedings/

[10] https://powermin.gov.in/en/content/electric-vehicle

[11] https://www.pnme.org.br/biblioteca/1o-anuario-brasileiro-da-mobilidade-eletrica/

[12] https://www.iea.org/reports/oil-2021

[13] https://www.udop.com.br/noticia/2020/08/17/refinarias-dos-eua-sao-transformadas-em-usinas-de-biocombustivel.html

[14] https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/04/22/veja-a-integra-do-discurso-de-jair-bolsonaro-na-cupula-de-lideres-sobre-o-clima.ghtml

[15] https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/renovabio

[16] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-03/aumento-da-gasolina-tambem-causa-impacto-no-preco-do-etanol

[17] http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/287784/1/Barassa_Edgar_M.pdf

[18] https://www.aneel.gov.br/sala-de-imprensa-exibicao-2/-/asset_publisher/zXQREz8EVlZ6/content/mobilidade-eletrica-aneel-aprova-30-projetos-com-investimento-de-r-463-8-milhoes/656877?inheritRedirect=false

[19] https://eixos.com.br/por-biocombustiveis-mme-faz-ressalvas-a-programa-bilionario-de-eletromobilidade/

[20] https://eixos.com.br/cnpe-aprova-resolucao-do-programa-combustivel-do-futuro/

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