O hidrogênio verde — produzido por eletrólise da água com fontes renováveis — é peça-chave da transição energética global.
Sua capacidade de descarbonizar setores com emissão intensiva em carbono, como a indústria pesada e o transporte de longa distância, aliada ao seu potencial de armazenamento para fontes intermitentes, como solar e eólica o transforma em vetor estratégico para a sustentabilidade energética mundial.
Sua adoção contribui para a independência energética de países com matriz renovável robusta, como o Brasil, que se posiciona como potencial exportador global.
Estima-se que o hidrogênio possa suprir até 18% da demanda energética mundial até 2050, impulsionando planos nacionais em curso na Alemanha, Japão e Austrália, conforme Estudos da Demanda de Energia publicados pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE).
Apesar de seu potencial transformador, o avanço dessa economia ainda enfrenta desafios técnicos, contratuais e regulatórios.
Enquanto a inovação tecnológica avança, a construção de instrumentos jurídicos robustos torna-se essencial para conferir previsibilidade à negociação, capazes de oferecer segurança às partes contratantes e alocar riscos.
Nesse sentido, os contratos de fornecimento de hidrogênio verde — ou Hydrogen Purchase Agreements (HPAs) — assumem um papel central.
Inspirados nos modelos consolidados dos Power Purchase Agreements (PPAs) do setor de energia renovável, os HPAs devem ir além do simples fornecimento de moléculas.
Eles estruturam relações complexas entre produtores, consumidores, financiadores, operadores logísticos e reguladores, detalhando os termos e condições para aquisição e do hidrogênio, definindo as características do hidrogênio adquirido e o período que se dará o fornecimento.
No Brasil, a promulgação da Lei nº 14.948/2024, que institui o Marco Legal do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono, representa um avanço importante ao estabelecer princípios, diretrizes e instrumentos para o desenvolvimento sustentável da cadeia do hidrogênio.
A nova legislação define categorias de hidrogênio com base na intensidade de carbono, estrutura um Sistema Nacional de Certificação e cria mecanismos de incentivo fiscal à produção e uso de hidrogênio de baixa emissão.
No entanto, muitos aspectos operacionais, tributários e regulatórios ainda carecem de detalhamento infralegal, o que gera incertezas práticas relevantes para os agentes do setor e impacta diretamente na redação e gestão dos contratos.
Além disso, projetos de hidrogênio verde estão sujeitos a um conjunto particular de riscos contratuais que devem ser avaliados, ainda que de forma abrangente, e inseridos na matriz de risco do projeto. Entre os principais, destacam-se:
- o risco de variação tecnológica, com possibilidade de obsolescência prematura dos sistemas de eletrólise e necessidade de readequação de sistema;
- as incertezas regulatórias, o que implica na possibilidade de serem necessárias alterações com investimentos adicionais a qualquer momento;
- a flutuação de custos operacionais, notadamente os custos de energia renovável e de água, que impactam diretamente a viabilidade econômica do projeto; e
- as barreiras logísticas, relacionadas à complexidade e custo de armazenamento, compressão, transporte e eventual conversão do hidrogênio para portadores alternativos como a amônia.
Diante desse cenário, os HPAs devem conter cláusulas estratégicas que enderecem riscos regulatórios, tecnológicos e ambientais.
É fundamental prever auditorias ESG, mecanismos de adaptação regulatória, cooperação tecnológica contínua, divisão clara de responsabilidades operacionais e certificações de origem renovável — destaque ao I-REC no Brasil — para garantir rastreabilidade, inovação e conformidade com compromissos de descarbonização.
Com relação à certificação, a compatibilidade entre certificações nacionais e internacionais pode se mostrar como outro aspecto sensível. A rastreabilidade do hidrogênio verde exigida por compradores europeus, por exemplo, pode seguir padrões distintos dos certificados emitidos pelo Sistema Nacional.
Cláusulas contratuais que prevejam a dupla certificação, ou a adoção de padrões internacionalmente reconhecidos como o CertifHy (UE) ou o Green Hydrogen Standard (GH2), são alternativas para mitigar esse risco e assegurar acesso a mercados externos.
Em termos econômicos, os HPAs vêm adotando modelos contratuais como o “take-or-pay” e o “firm delivery“.
No primeiro, o comprador assume a obrigação de pagar por um volume mínimo acordado, mesmo que não o consuma integralmente, assegurando a bancabilidade do projeto, ou seja, a capacidade de atrair financiamento de instituições financeiras.
Já no segundo, o fornecedor compromete-se a entregar o produto de forma contínua e sob especificações técnicas rigorosas, o que implica custos logísticos e operacionais mais elevados, mas oferece maior previsibilidade ao consumidor final.
Para assegurar a bancabilidade dos projetos, ainda, é comum que os HPAs prevejam mecanismos complementares de garantia, como fianças bancárias, seguros de performance, garantias corporativas e cláusulas de step-in a favor de financiadores.
A escolha adequada desses instrumentos depende do perfil do projeto, do apetite de risco dos agentes envolvidos e da maturidade da estrutura institucional. Tais garantias reforçam a segurança jurídica e contribuem para reduzir o custo de capital e viabilizar financiamentos de longo prazo.
Outro desafio sensível relevante diz respeito à precificação. Em um mercado ainda em formação, não há índices amplamente reconhecidos que sirvam de base para o cálculo do preço do hidrogênio verde.
Por isso, as fórmulas contratuais frequentemente incorporam múltiplos vetores, como o custo da energia renovável, o preço da tonelada de carbono, os custos operacionais do eletrolisador e fatores inflacionários.
A ausência de parâmetros estáveis impõe ao contrato a tarefa de absorver volatilidades, o que exige cláusulas de ajuste periódico, benchmarking internacional e, sobretudo, um entendimento dinâmico da relação entre risco e retorno.
Apesar dessas lacunas, o mercado brasileiro apresenta vantagens competitivas, como a abundância de fontes renováveis, a capacidade instalada ociosa em determinadas regiões, as condições climáticas favoráveis e a demanda potencial em setores industriais eletrointensivos.
A celebração de contratos de fornecimento — mesmo antes da maturação plena do marco legal — revela a confiança dos agentes na construção de soluções privadas adaptadas à realidade regulatória em evolução.
Muitos desses contratos têm sido elaborados com cláusulas escaláveis, baseadas em milestones, e com mecanismos internos de readequação jurídica, o que confere flexibilidade e resiliência frente às transformações legislativas.
É nesse cenário de transformação que os HPAs devem ser compreendidos não apenas como instrumentos de compra e venda, mas como elementos estruturantes de uma cadeia produtiva ainda em formação.
A construção contratual — em diálogo constante com os avanços normativos, tecnológicos e econômicos — será decisiva para definir se o hidrogênio verde ocupará, de fato, um papel central na matriz energética do futuro.
A capacidade de prever riscos, distribuir obrigações com equilíbrio e manter adaptabilidade frente às incertezas regulatórias será o diferencial entre projetos economicamente viáveis e iniciativas fadadas à estagnação.
Este artigo expressa exclusivamente a posição das autoras e não necessariamente da instituição para a qual trabalham ou estão vinculadas.
Talita Orsini de Castro Garcia é especialista da área Contratual e sócia do escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados.
Chiara Prupere Giovaneti é advogada especialista da área contratual do escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados.
Ana Lidia Muraro é estagiária da área contratual do escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados.