O Brasil é reconhecido mundialmente como um dos líderes na adoção de biocombustíveis, tanto em escala como em longevidade.
A mistura obrigatória de etanol anidro na gasolina e de biodiesel no diesel, implementada desde os anos 2000, tornou-se um componente permanente da política energética brasileira — com benefícios ambientais e industriais inegáveis.
Mas também com efeitos econômicos e técnicos concretos, frequentemente negligenciados no debate público.
Com a recente decisão de elevar o teor obrigatório de etanol anidro de 27% para 30% (E30, proposta em discussão no governo) e o aumento já consolidado da mistura de biodiesel de 14% para 15% (B15), é fundamental analisar os efeitos práticos dessas medidas sobre o mercado e, principalmente, sobre os preços pagos pelo consumidor final.
Biocombustíveis: um custo embutido com justificativa ambiental
Tanto o etanol quanto o biodiesel são mais caros, por litro, do que seus equivalentes fósseis — a gasolina pura (gasolina A) e o diesel mineral. Em 2024, o etanol anidro custava, em média, 25% a 30% mais do que a gasolina A.
Já o biodiesel, em função da cadeia produtiva mais restrita e do uso de matérias-primas como soja e gordura animal, chegava a ser 40% a 50% mais caro do que o diesel fóssil.
Ao adicionar percentuais obrigatórios desses biocombustíveis, o preço final do combustível entregue ao consumidor é, inevitavelmente, afetado.
Cada 1 ponto percentual a mais na mistura de biodiesel representa um acréscimo estimado de R$ 0,02 a R$ 0,04 no preço final do litro de diesel, a depender da praça, da fonte do biodiesel e da logística envolvida.
No etanol, o impacto é menor por ponto percentual, mas ainda relevante na soma total.
Impactos no curto prazo: elevação de preços e repasses imediatos
O impacto mais imediato da elevação das misturas é a pressão de custo na refinaria ou distribuidora, que precisa adquirir volumes adicionais de biocombustíveis — a preços geralmente mais altos e com menor previsibilidade de oferta, principalmente em entressafras ou períodos de alta da soja.
Como o mercado de distribuição tende a repassar automaticamente esses custos para a bomba, os efeitos para o consumidor são sentidos quase que instantaneamente. No caso do biodiesel, esse repasse é ainda mais direto, pois o volume envolvido (15% do diesel) é significativo e seu custo unitário é elevado.
Além disso, o aumento da mistura obrigatória, quando não acompanhado de medidas compensatórias — como redução de tributos, incentivo à produção mais eficiente ou subsídios de transição — onera proporcionalmente mais os consumidores de menor renda, que dependem diretamente de combustíveis para transporte urbano ou trabalho autônomo.
Riscos técnicos: confiabilidade mecânica, corrosividade e desempenho
O aumento da mistura de biodiesel para 15% — o maior percentual obrigatório em vigor no mundo — levanta preocupações legítimas quanto à segurança e confiabilidade técnica da frota nacional.
Apesar de esforços para demonstrar a viabilidade do B15, ainda não há consenso técnico robusto sobre os efeitos mecânicos cumulativos dessa proporção em motores convencionais, especialmente os mais antigos, ou em condições severas de operação (climas frios, transporte de carga pesada, uso contínuo).
Há relatos e estudos preliminares que indicam potencial aumento de corrosão, entupimento de filtros, degradação prematura de componentes e perda de eficiência energética com misturas acima de 12%. O Brasil, com sua frota heterogênea e envelhecida, precisa de dados mais sólidos antes de institucionalizar esse novo padrão.
O único estudo técnico amplamente divulgado como justificativa para a adoção do B15 — realizado pelo Instituto Mauá de Tecnologia — ainda carece de validação por múltiplas instituições independentes e em condições variadas de uso, como seria esperado em uma política pública de impacto nacional.
O Instituto Mauá é respeitado em áreas de engenharia, mas não possui tradição específica em certificação automotiva ou em ensaios em frotas de larga escala.
É prudente, portanto, que a decisão de avançar para o B15 não se baseie exclusivamente em um estudo isolado, encomendado e financiado por partes interessadas, sem processo de escrutínio técnico e debate aberto com fabricantes, transportadores, entidades independentes e especialistas da área automotiva.
Impactos no médio e longo prazo: volatilidade, oferta e percepção pública
No horizonte de médio prazo, o mercado passa a conviver com uma volatilidade estrutural maior, vinculada à sazonalidade da produção agrícola. O preço do etanol depende da safra de cana e milho; o do biodiesel, do comportamento do mercado de grãos e proteínas animais.
Isso cria uma nova camada de instabilidade sobre um mercado já sensível a flutuações internacionais do petróleo e do câmbio.
A elevação da demanda compulsória por biodiesel também pode gerar pressão sobre a capacidade de oferta nacional, forçando importações, o que contradiz o argumento de “autossuficiência” e pode impactar negativamente a balança comercial.
Além disso, o aumento dos custos sem que o consumidor perceba claramente os benefícios ambientais da medida pode gerar resistência social à transição energética, comprometendo sua legitimidade.
Conclusão: entre o impulso político e a cautela técnica
O Brasil pode — e deve — seguir liderando em biocombustíveis. Mas não pode cometer o erro de transformar uma política de longo prazo em uma resposta apressada ou marcada por interesses setoriais.
Decisões como o aumento para B15 ou para E30 devem ser precedidas de estudos multicêntricos, testes padronizados e diálogo com os usuários finais da tecnologia: transportadores, empresas de logística, cooperativas agrícolas, frotistas e consumidores autônomos.
A transição energética exige ousadia, mas também responsabilidade. E no caso do biodiesel, essa responsabilidade começa por ouvir os motores antes de virar a chave.
Jean Paul Prates é mestre em Política Energética e Gestão Ambiental pela Universidade da Pensilvânia e mestre em Economia do Petróleo, Gás e Motores pelo IFP School (Paris). Foi secretário de Estado de Energia do RN (2007-2010), presidente da Petrobras (2023-2024) e senador da República (2019-2023).