O setor elétrico possui características específicas. É capital intensivo de larga maturação e alta complexidade e — o mais importante — configura-se como essencial para o desenvolvimento do país.
Após sofrer problemas de liquidez e sem capacidade para bancar sua expansão no fim dos anos 80 e início dos anos 90, o Brasil redefiniu a estrutura deste mercado. Assim, paralelo a um amplo processo de privatização, iniciou em 1996 um profundo Projeto de Reestruturação do Setor Elétrico (Re-SEB), que dois anos mais tarde culminaria na Lei 9.648/98.
Na esteira desse movimento, houve completa reformulação dos marcos legal e regulatório, levando à criação do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), do Mercado Atacadista de Energia — hoje a Câmara Comercializadora de Energia Elétrica (CCEE).
Assim como os primeiros passos na direção da abertura do mercado de eletricidade, a desverticalização de empresas de energia e a criação de uma agência reguladora independente, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Avanços notáveis que aprimoraram e modernizaram o setor, resgataram a confiança dos investidores e foram fundamentais para reativar a capacidade de expansão e equacionar demandas represadas por anos.
Desde então, passados quase 30 anos do Re-SEB, vivenciamos diversas transformações técnicas, comerciais e legais que impactaram sobremaneira esse bem-sucedido modelo que, por muito tempo, respondeu adequadamente às necessidades setoriais.
Mas, agora, está mais que na hora de parar, pensar e (re)formular políticas e diretrizes para uma nova repactuação do sistema elétrico.
O desenvolvimento e avanço de mercado vêm da maturação e do diálogo entre pares e divergentes pela unissonância. A reestruturação de 1998 começou com o Re-SEB e com intensa participação de diversos e importantes atores do setor elétrico, agentes do governo e da sociedade.
As diretrizes da época foram fundamentais para deixar o modelo mais moderno e eficiente, e sinalizar ao capital privado que existia uma regra robusta e duradoura no Brasil. Significou ainda um sinal de confiança aos investidores para injetar recursos de longo prazo no país.
A modernização, junto à criação da Aneel, do MAE (hoje CCEE) e do ONS independentes, mostrou a força de uma política de Estado, sem submissão e lastros a quaisquer governos.
No percurso de quase 30 anos ajustes e aprimoramentos foram necessários e bem-vindos. Em 2004, houve o Decreto 5.163, que adicionou elementos importantes à Lei 9.648, como nova regulamentação para a comercialização de energia, processos de outorga das concessões e autorizações de geração de energia elétrica, criando também os leilões para compra de energia por parte das distribuidoras.
No mesmo ano, a Lei 10.847 deu origem à Empresa de Pesquisa Energética (EPE) que, por meio de suas ações, subsidia o planejamento do setor.
Na ocasião da implementação da Lei 9.648, o país era majoritariamente atendido por usinas hidrelétricas, complementadas por geração térmica, ou seja, fontes despacháveis capazes de prover inércia elétrica ao sistema.
Com o avanço dos anos, a matriz energética passou a contar com fontes intermitentes (eólica e solar). Em 2009, houve o primeiro leilão para as eólicas no Brasil. A regulamentação da geração solar, na modalidade centralizada e distribuída, por sua vez, veio em 2012.
Ambas começaram a ganhar escala e trouxeram, além da ampliação da diversidade e redução dos preços, características de intermitência na produção. Houve a modificação da tipologia da curva de oferta de energia, o que impôs novos desafios ao sistema, tanto de natureza técnico-operacional para o ONS, quanto para as condições comerciais.
Somam-se a esse contexto impactos no mecanismo de realocação de energia e na forma de operar o sistema. Hoje, é mais desafiador ao ONS garantir a confiabilidade estática — para atender a demanda quando há a redução da produção de fontes eólica e solar — e dinâmica, que diz respeito à estabilidade do sistema.
Não à toa, o governo prevê realizar um novo leilão de reserva de capacidade para criar mecanismos de mitigação aos crescentes riscos operacionais.
Há de se considerar que o sistema elétrico brasileiro é absolutamente interligado, num país com dimensão continental. Ou seja, quando há um problema localizado, pode ter desdobramentos em todo o território.
Em agosto de 2023, por exemplo, 25 estados e o Distrito Federal — exceto Roraima por não fazer parte do Sistema Interligado Nacional (SIN) — registraram falta de energia por causa de um simples desligamento de uma linha de transmissão localizada no Ceará, que desencadeou um blecaute generalizado que atingiu quase todo o país e persistiu por várias horas
O apagão obrigou o ONS a acionar o ERAC (Esquema Regional de Alívio de Carga) para mitigar a magnitude do problema e evitar o colapso total do fornecimento de energia.
Contextos como entrada de novas fontes (não despacháveis) na matriz energética, micro e minigeração distribuída, novos usos finais da energia, mobilidade elétrica, baterias estacionárias, digitalização de redes elétricas e outras inovações tecnológicas, impõem a necessidade de revisão das regras em vigor do sistema elétrico brasileiro.
Há ainda discussões a serem feitas quanto à política de subsídios sobre o que é pertinente ou não em termos de incentivos. É passada a hora de um “Re-SEB 2” com ampla revisão e aprimoramento do modelo setorial para colocarmos em prática melhores condições técnicas, econômicas e comerciais.
Nos últimos anos, notamos situações de poder de lobbies, que são legítimos, mas não necessariamente trazem a melhor solução sistêmica ao país. Precisamos ter cuidado para não sermos capturados por interesses específicos.
É crucial envolver o governo federal, a Aneel e órgãos vinculados, representantes da iniciativa privada e sociedade civil em debates sobre o futuro do setor porque, juntos, agregam um rico acervo de interesses e conhecimento.
A parceria e a sinergia entre todos convergem para uma visão sistêmica que se sobrepõe a olhares particulares, visando uma necessária e profunda repactuação do sistema elétrico nacional.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.
Max Xavier Lins é CEO do Grupo Delta Energia. Na empresa responde pela gestão operacional da holding. Engenheiro eletricista pós-graduado em Sistemas de Potência e possui MBA em Finanças. É uma das principais referências no setor elétrico brasileiro, tendo atuado em grandes empresas brasileiras e estrangeiras, nas quais implementou transformações estruturais e modernização tecnológica.