Neutralidade tecnológica

Contabilidade de carbono é um debate político revestido de tecnicismo, diz Heloísa Borges

Diretora da EPE defende a necessidade da transição justa e inclusiva e respeito à neutralidade tecnológica e às vocações regionais

BRASÍLIA — A discussão sobre a contabilidade de carbono, frequentemente apresentada como um cálculo puramente técnico, é na verdade um debate político complexo e que envolve interesses geopolíticos e a defesa de tecnologias específicas.

Essa é a visão da diretora de Estudos do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Heloisa Borges.

“Quem acha que é só contar uma tonelada de carbono está completamente enganado. A forma como se conta e as premissas por trás desses modelos também importam”, disse Heloísa, em entrevista ao estúdio eixos nesta quinta-feira (26/6), durante o Energy Summit 2025.

Para a diretora, é crucial reconhecer essa dimensão política. O Brasil tem defendido a neutralidade nas premissas dos modelos de contabilidade de carbono.

Ela reforçou, ainda, que a transição energética precisa ser justa e inclusiva, permitindo que cada sociedade construa seus próprios caminhos a partir da realidade local e vocações regionais. Nesse cenário, os biocombustíveis se destacam como um exemplo prático da experiência brasileira.

“Se a gente começar a trancar caminhos e escolher tecnologias, a gente corre o risco de ficar com uma solução muito cara para alguns ou muito excludente”, alerta.

Heloísa Borges destaca o potencial de desenvolvimento do negócio de estocagem de carbono associado à indústria de etanol.

A EPE está mapeando potenciais de estocagem de CO2 próximos às usinas sucroalcooleiras, visando reduzir os custos de transporte.

Combinar a captura e armazenamento de carbono (CCS) com a bioenergia resulta em emissões negativas, o que “abre um orçamento de carbono” valioso para o país.

Distorção do debate recai sobre etanol de milho brasileiro

Um dos exemplos mais claros da distorção na contabilidade de carbono, segundo Heloisa Borges, é o tratamento dado à safrinha de milho — crescente fonte de produção do combustível no Brasil.

Embora plantado em áreas já utilizadas para soja, num sistema que recupera o solo e não provoca novos desmatamentos, muitos modelos contábeis “punem” o etanol de milho brasileiro.

É como se a produção estivesse associada a um desmatamento que não ocorre, gerando uma contabilidade equivocada, pontua a diretora da EPE.

O tema foi abordado por Lula na última reunião do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE). O presidente voltou a citar a falta de reconhecimento, por parte dos EUA e da Europa, da “safrinha” de milho brasileira como diferencial climático.

A participação do chanceler Mauro Vieira no evento serviu de apoio simbólico à agenda. O Brasil defende a chamada “tropicalização” das metodologias internacionais sobre uso da terra direto e indireto (LUC e iLUC), que penalizam o ciclo de vida do etanol de milho nacional, mais limpo do que o americano.

A pressão brasileira ganhou apoio da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês) e da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) – e foi incorporada ao documento final do G20, que menciona a necessidade de “metodologias que levem em conta circunstâncias nacionais e evidências científicas do IPCC”, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas.

A diretora explica que essa incoerência é evidente em sistemas como o Corsia (Plano de Compensação e Redução de Carbono para a Aviação Internacional), no qual o milho safrinha não é reconhecido adequadamente.

A origem dessa distorção está em modelos que ignoram as particularidades agrícolas e climáticas do Brasil, cita Heloísa.

Enquanto países de clima temperado, com apenas uma safra anual, precisam fazer a difícil escolha entre alimento e energia (o famoso debate “food versus fuel“), no Brasil, a capacidade de ter até três safras por ano elimina essa competição entre o combustível e o alimento, segundo ela.

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