Chegamos ao fim da segunda década do século XXI sem muito para comemorar no que se refere à transição energética para uma economia de baixo carbono.
A década de 2020 fechou com uma temperatura média 0,82oC superior à média do Século XX, mostrando que se mantém significativa a distância entre a aspiração de aumento da temperatura global abaixo de 2oC – como preconiza o Acordo de Paris – e as ações concretas para a garanti-la. Mas esta é uma agenda sem volta e cada vez mais urgente.
Governos, inciativa privada e sociedade devem continuar se debruçando sobre os desafios que a transição energética impõe aos diferentes setores da economia, à procura de soluções eficientes, rápidas e acessíveis para cada um deles.
Este artigo pretende discutir o papel do setor de transportes, que nos seus diversos subsetores (transporte urbano de passageiros, de longa distância de pessoas e mercadorias) ainda é fortemente dependente do petróleo, responsável por cerca de 90% dos combustíveis utilizados pelo setor.
O Plano Decenal de Energia (PDE 2030) com o planejamento energético para os próximos 10 anos, que o Ministério de Minas e Energia colocou em consulta pública, indica que o setor de transporte continuará a ser o principal responsável pelas emissões de gases de efeito estufa (GEE) na produção e consumo de energia no Brasil, respondendo ao fim desse período por 45% do total de emissões.
Este número, apesar de representar um pequeno avanço quando comparado com a participação de 46% em 2019, indica a urgência do tema. O relatório também mostra que os combustíveis mais representativos em termos de emissões de GEE nesse horizonte são o óleo diesel (38%), o gás natural (20%) e a gasolina (13%).
E conclui que “as maiores oportunidades de redução de emissões no consumo de energia continuarão na substituição do diesel de origem fóssil e da gasolina no setor de transportes”.
Como garantir esta substituição? Eletricidade, hidrogênio e biocombustíveis são atualmente as principais alternativas para a descarbonização do setor de transporte.
A escolha de uma alternativa ou, o que é mais provável, a combinação delas, depende muito de como o setor de transporte se organiza em cada país; e seu sucesso depende tanto da capacidade de entrega de um produto confiável a custo competitivo ao cliente, quanto da sua sustentabilidade em termos de impacto local, escala global e segurança.
As políticas e regulamentações têm papel crucial no desenvolvimento de soluções efetivas, baseadas nas tecnologias disponíveis mundialmente.
No Brasil, os biocombustíveis já ocupam um papel de destaque na matriz de transporte. Hoje a regulação estabelece mandatos de mistura obrigatória de biocombustível, tanto na gasolina (etanol anidro 27%) quanto no diesel (biodiesel, atualmente em 12%, e com previsão para se atingir 15% em 2023).
No entanto, o atraso na regulamentação de novas rotas tecnológicas, mais eficientes, para produção do biodiesel no país apresenta um risco para o protagonismo do país na descarbonização do setor de transporte.
Os chamados biocombustíveis avançados têm crescido na matriz energética mundial. Entre eles destacam-se os que usam tecnologia do hidrotratamento, comumente chamados HVO (hidrotratamento do óleo vegetal, em inglês) ou diesel verde, por serem quimicamente equivalentes ao derivado fóssil e, portanto, totalmente compatíveis com a infraestrutura existente para o petróleo.
Recentemente a Total, empresa francesa, anunciou a transformação de uma de suas refinarias de petróleo em uma biorrefinaria, para processar apenas matéria-prima renovável usando essa tecnologia.
E aqui ao lado, na América Latina, o Grupo ECB acaba de anunciar a implantação de uma biorrefinaria no Paraguai, com contratos de fornecimento de BioQaV (bioquerosene de aviação) para a BP e a Shell.
Por falta de regulamentação, ainda não existem planos concretos de investimento para a implantação dessas tecnologias no Brasil. A Petrobras anunciou que concluiu com sucesso os testes para a adição de matéria-prima renovável diretamente na refinaria junto com o petróleo, produzindo um diesel já com um componente renovável, através do chamado co-processamento.
Esta seria a alternativa mais rápida e barata para iniciar a produção no país de um diesel com uma parcela renovável. Mas sem a regulamentação adequada, os testes não podem se transformar em oferta de produto à sociedade brasileira.
Existe grande potencialidade para o HVO, o terceiro biocombustível que mais cresce no mundo, substituindo diretamente o diesel, sem a instabilidade da mistura que hoje compõe o diesel B no Brasil. Sua qualidade é também compatível com a geração de motores mais eficientes necessários ao atendimento do Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (PROCONVE).
Adicionalmente, existe uma sinergia na produção do HVO com o BioQAV, fundamental no atendimento a padrões e acordos internacionais aos quais teremos que nos adequar muito em breve.
Mas, vale repetir, o Brasil está atrasado na inserção deste biocombustível na sua matriz energética.
A regulamentação de novas rotas tecnológicas está sendo discutida desde meados de 2019, quando a ANP abriu uma Consulta Pública sobre o assunto, com uma classificação restritiva ao biodiesel daí decorrente, que o deixava de fora das atuais políticas públicas de biocombustíveis.
Em dezembro, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) publicou resolução criando um Grupo de Trabalho (GT) com representantes do Governo Federal e outros órgãos públicos, que terá 120 dias para deliberar sobre a regulamentação da questão. Vejo com otimismo que um passo concreto foi dado para avançarmos, e espero que a sociedade seja incluída no desenvolvimento desse trabalho.
As decisões que tomamos agora moldam o nosso futuro. Daí a importância de que o GT proponha uma regulamentação para os biocombustíveis avançados que tenha uma convergência com as políticas públicas atuais, evitando o chamado “custo de arrependimento” por escolhas equivocadas.
Ou seja, é fundamental que o biodiesel produzido por tais tecnologias seja considerado no percentual da mistura obrigatória e elegível ao Renovabio, o mercado de compensação de créditos de carbono do setor de transporte do país.
São decisões importantes para garantir a viabilidade de qualquer solução, e o que vai determinar a velocidade da mudança.
Meu entendimento é que qualquer restrição às novas tecnologias de produção de biodiesel na Política Nacional de Biocombustíveis vai contra a Lei de Liberdade Econômica (13874/19) que veda (i) a criação de reserva de mercado, (ii) a redação de enunciados que impeçam a entrada de novos competidores ou que impeçam e retardem a adoção de novas tecnologias, e (iii) criação de demanda compulsória de produto, uma vez que apenas o biodiesel base éster poderia ser utilizado na mistura.
É importante termos uma visão sistêmica que contemple a complexa dinâmica do setor de energia, suas peculiaridades e a relação entre os diversos agentes econômicos e sociais. É por isso que apoio a presença dos biocombustíveis na matriz brasileira e entendo que o biodiesel é um elemento essencial, por sua estreita ligação com a atividade econômica do país.
No entanto, entendo que é hora de se repensar algumas assimetrias importantes nesse segmento, para trazer benefícios ao consumidor final, à sociedade, e para garantir que os biocombustíveis mantenham um papel protagonista na transição energética do setor de transporte, contribuindo efetivamente para a redução da emissão de GEE deste segmento.
Valéria Amoroso Lima é diretora de Downstream do IBP. Formada em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais, com pós-graduação em Mercado de Capitais pela FGV e pós-MBA em governança pela Saint Paul Escola de Negócios. Tem 36 anos de experiência em diversas áreas do setor de energia, atuando em empresas estatais e de capital privado nacional e internacional. Suas últimas posições antes de integrar o IBP foram na BG e na Shell, participando desde o início do projeto de desenvolvimento do pré-sal brasileiro.
O artigo não representa necessariamente a opinião do Sim, Elas Existem e da epbr