Por mais que alguns queiram decretar a morte de uma indústria que sequer nasceu, o setor de hidrogênio de baixo carbono está em movimento e vive hoje o que se pode chamar de um processo de depuração e amadurecimento.
O entusiasmo inicial — o tal hype — deu lugar a uma etapa mais crítica, de revisão estratégica, aperfeiçoamento dos projetos, enquanto se espera por sinais claros de políticas públicas capazes de desenhar um mercado sustentável e estimular a demanda necessária para viabilizar investimentos de longa amortização.
Projetos estruturantes nos Estados Unidos, na União Europeia e no Brasil enfrentam um compasso de espera devido à incerteza regulatória.
A falta de diretrizes claras e a possibilidade de mudança nas regras no meio do jogo, além de postergar investimentos, estão trazendo certa preocupação a projetos já estruturados e que agora temem maior risco associado.
O pano de fundo ainda é a disputa setorial e geopolítica entre o hidrogênio “verde” — produzido via eletrólise com 100% de energia renovável — e o “de baixo carbono” — especialmente o feito com gás natural e captura de carbono (CCS).
Nos EUA, republicanos ameaçam incentivos da IRA
Nos EUA, o futuro do setor passa por um momento decisivo. A Lei de Redução da Inflação (IRA), aprovada em 2022, foi um divisor de águas ao criar o crédito fiscal 45V — um subsídio de até US$ 3 por quilo de hidrogênio limpo, e agora pode ser revista, seguindo a posição anti-climática do governo de Donald Trump.
Em janeiro de 2025, ainda na gestão do democrata Joe Biden, o Tesouro norte-americano publicou as regras finais para acesso ao crédito já com algumas flexibilizações, como o adiamento da correspondência horária para 2030, no caso do uso de renováveis para o hidrogénio verde, e maior abertura ao gás natural com captura de carbono.
Agora, mais preocupante é a ameaça legislativa. Em maio, a Câmara dos Representantes aprovou, por margem estreita, o projeto One Big, Beautiful Bill, que revoga ou limita subsídios climáticos, incluindo o crédito 45V.
O texto ainda precisa passar pelo Senado, mas já acionou um alarme na associação setorial Fuel Cell and Hydrogen Energy Association (FCHEA), que classificou a proposta como um “retrocesso catastrófico”, que “enviaria mais um sinal desestabilizador ao mercado — paralisando investimentos e interrompendo o desenvolvimento de projetos”.
Desde a aprovação da IRA, mais de US$ 320 bilhões foram destinados, principalmente a distritos controlados por republicanos, na forma de novos projetos de energia limpa e fábricas de veículos elétricos, que incluem plantas de hidrogênio.
Outros US$ 522 bilhões em investimentos estão previstos, mas agora estão ameaçados pela eliminação dos incentivos fiscais proposta pelos republicanos, segundo levantamento do The Guardian.
A indústria de óleo e gás, que até chegou a defender o incentivos do 45V para o hidrogênio, apoiou a iniciativa do congresso dos EUA. Segundo o presidente do Instituto Americano de Petróleo, isso ajuda “a restaurar o domínio energético norte-americano“.
Em tempo, o crédito tributário 45Q, que incentiva projetos de CCS e favorece a produção de hidrogênio a partir do gás natural, permanece intacto e não faz parte de cortes, o que, em tese, aumenta competitividade da indústria de gás frente a projetos de eletrólise.
União Europeia vive disputa entre rigor ambiental e viabilidade econômica
Na Europa, o impasse não é menos complexo. A Comissão Europeia aposta em critérios rigorosos para definir o que é hidrogênio renovável, sendo necessário comprovar adicionalidade, correlação temporal e geográfica.
Essas exigências, embora ambientalmente robustas, podem encarecer o sistema em até € 82 bilhões até 2048, segundo estudo recente.
“O requisito da adicionalidade, que exige o uso de novas instalações de energia renovável para eletrólise, surge como o mais caro de cumprir, mas também o mais eficaz para acelerar a transição para energia renovável, especialmente antes de 2030”, afirma o estudo.
Sendo assim, o dilema europeu está entre manter a integridade climática e não sufocar economicamente os projetos. Se aproveitando do impasse, a indústria de gás natural também vem atuando na pressão por flexibilização das regras por lá.
Atualmente, a proposta de ato delegado que regula o hidrogênio de baixo carbono enfrenta resistência dentro do próprio Parlamento Europeu.
Deputados do Partido Popular Europeu (PPE), maior bancada do parlamento, consideram os critérios propostos “restritivos e impraticáveis” e defendem uma abordagem mais tecnológica e geopoliticamente neutra, incluindo eletricidade nuclear ou de fontes “não adicionais” nos cálculos de elegibilidade, segundo documento obtido pelo Euractiv.
A pressão também vem do Hydrogen Europe, que pede à Comissão Europeia uma posição mais flexível e “pragmática” para a produção de hidrogênio, “que possa contribuir para o alcance das metas” da UE e “que permita a concorrência entre diferentes vias de produção”.
A entidade, que defende múltiplas rotas de produção hidrogênio, incluindo fósseis, é um dos atores com acesso mais frequente às reuniões da Comissão sobre hidrogênio.
Do outro lado, grandes investidores como a Hy24, maior fundo dedicado ao hidrogênio do mundo, alertam para o risco de desmobilização do setor caso falte segurança regulatória.
Durante evento do setor na Holanda, o CEO Pierre-Etienne Franc afirmou que os sinais políticos ambíguos e a hesitação da Europa, sobretudo diante das reviravoltas nos EUA, podem travar o desenvolvimento industrial.
No mesmo evento, o presidente da Air Products para a Europa e África, Ivo Bols, disse que não é o momento de “enfraquecer” as regras e metas europeias para o hidrogênio verde.
Bols afirmou aos participantes que a certeza e a previsibilidade a longo prazo são cruciais para os investimentos e destacou a necessidade de preservar as estruturas atuais.
A Air Products é responsável pelo desenvolvimento do maior projeto de produção de hidrogênio verde do mundo, o Neom Green Hydrogen, que em 2026, espera produzir 600 toneladas por dia de hidrogênio limpo por eletrólise, e até 1,2 milhão de toneladas por ano de amônia verde.
Brasil tem decreto pronto, mas ainda na gaveta
No Brasil, a situação também frustra investidores. Aprovado no ano passado, o marco regulatório do hidrogênio estabeleceu a base jurídica para o setor, mas ainda falta sua regulamentação.
O decreto que detalha diretrizes e critérios de elegibilidade está pronto, mas ainda não foi publicado pelo governo federal.
A expectativa maior será em relação à metodologia para contabilidade das emissões, o que pode favorecer uma ou outra rota de produção, e os créditos para acesso aos subsídios previstos em lei. De novo, tendo como pano de fundo uma disputa entre renováveis e óleo e gás.
Enquanto isso, empresas e consórcios que planejam investir em hidrogênio verde no Brasil, vêm se movimentando, solicitando acesso à rede elétrica — com algumas dificuldades —, garantindo pré-contratos de áreas para as futuras instalações, e buscando parcerias para identificação de possíveis offtakers.
De certa forma, a demora na regulamentação no Brasil é menos preocupante que as incertezas internacionais, uma vez que o nosso principal mercado consumidor, pelo menos em um primeiro momento, será a União Europeia.
Também é importante levar em conta que, qualquer retrocesso em incentivos nos EUA, pode fazer com que esses investimentos se voltem para o Brasil, em especial nos projetos de eletrólise.
O momento exige decisões políticas firmes, capazes de alinhar ambições ambientais, realismo econômico e estabilidade regulatória. Enquanto há uma indefinição regulatória e um vaivém legislativo, fica difícil para os empreendimentos estimar custos, planejar investimentos e garantir retorno financeiro.