A abertura do mercado de gás natural no Brasil estacionou mais uma vez. Este é um sonho antigo, acalentado pelos consumidores desde a década de 1980, quando as reformas liberalizantes transformaram o setor de energia em diversos países ao redor do globo. O primeiro passo nessa direção foi dado em 1995, quando o Congresso Nacional flexibilizou o monopólio da união por meio da Emenda Constitucional nº 9/95.
A atividade de comercialização da molécula está prevista na Lei do Petróleo (Lei nº 9.478/1997) e também na Lei nº 11.909/2009 – a primeira Lei do Gás. Mas a presença imperativa da Petrobrás nos segmentos de produção, importação, transporte e sua participação acionária na maioria das distribuidoras em atividade no País foram um entrave à entrada de novos players. Não havia, e ainda não há, restrição à sua forte presença em toda cadeia.
Essa é a realidade que a nova Lei do Gás se propõe a mudar. O PL nº 4476/2020, que tramita no Senado após a aprovação do PL nº 6.407/2013 na Câmara dos Deputados ainda será discutido e aprovado. O texto prevê mudanças substanciais no modelo de mercado, o acesso negociado a infraestruturas essenciais como gasodutos e unidades de regaseificação, além da separação entre os segmentos competitivos (produção, comercialização) e não-competitivos (transmissão, distribuição).
Na prática, o novo texto transforma a malha de gasodutos que existe hoje num sistema de transporte de gás natural de fato. Explique-se: no modelo existente, para movimentar o gás é necessário saber a origem e o destino do insumo e contratar todos os trechos de gasoduto no percurso, pagando-se a somatória das tarifas; o PL prevê a contratação apenas da injeção ou da retirada do gás, ou seja, o consumidor contrata uma capacidade de retirada e pode comprar o gás do fornecedor que bem entender.
Mas o avanço em direção a um modelo de mercado realmente livre e competitivo vai além da possibilidade de escolher um fornecedor e pagar pela capacidade de retirada. É necessário que haja opções, que exista concorrência, e que esses potenciais “vendedores” de gás possam competir em situação de igualdade. Daí a importância da desverticalização.
No texto aprovado pela Câmara, seu artigo 30 impede as participações cruzadas, ou seja, que empresas de um mesmo grupo, que atuem simultaneamente em diferentes atividades da cadeia – exploração, desenvolvimento, produção, importação, carregamento e comercialização de gás natural – possam compartilhar informações sensíveis e restringe também a participação de executivos no board de mais de uma delas. Seu objetivo inicial era arrefecer o poder da Petrobrás mas, na conjuntura atual, essa regra é vital para que o fim do monopólio estatal não represente um avanço dos monopólios privados nos Estados federados, com o pretexto de contornar desafios locais.
A Petrobras, após uma revisão de suas prioridades corporativas, tornou-se aliada no processo de abertura e hoje desempenha um importante papel na sua efetivação. A assinatura de um Termo de Compromisso de Cessação (TCC) com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) estabeleceu a obrigatoriedade de alienação de ativos da empresa nas malhas de transporte (NTS, TAG e TBG). Além disso, está prevista a independência do compradores com relação aos demais agentes que compõem os elos da cadeia de gás natural.
O artigo 30, que garante a desverticalização, é fundamental para garantir que mercado de gás seja, de fato, um ambiente propício à livre concorrência. A expectativa, agora, é de que o Senado ouça os apelos da sociedade e aprove o texto original do projeto. Além de beneficiar a sociedade como um todo, o novo mercado servirá como importante fator de atração de investimentos na retomada da economia e pode resultar em preços mais competitivos para todos os brasileiros.
Carlos Faria é diretor-presidente da Associação Nacional dos Consumidores de Energia