Desconcentração do mercado de gás

Europa ensina que gas release ajuda a desafiar agente dominante, diz EPE

Estatal analisa experiências internacionais com programas de desconcentração de mercado de gás e vê lições para Brasil

Heloísa Borges, diretora da EPE, durante entrevista ao estúdio eixos na CeraWeek 2025.
Heloísa Borges, diretora da EPE, durante entrevista ao estúdio eixos na CeraWeek 2025.

A experiência europeia mostra que programas de desconcentração do mercado de gás natural podem ter resultados diferentes, a depender do contexto de cada país, mas que no geral ajudaram a desafiar o agente dominante e a acelerar a concorrência interna onde as reformas pró-abertura não surtiram os efeitos esperados, conclui um estudo apresentado pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) nesta terça-feira (18/3). Veja o estudo na íntegra (.pdf).

A estatal do planejamento energético ressalva que, na maioria das vezes, o gas release foi acompanhado de outras mudanças regulatórias e estruturais – e que em alguns casos, portanto, não é possível separar por completo os efeitos do programa de desconcentração das demais medidas.

A EPE reconhece que o contexto europeu (fortemente dependente de importações) é diferente do brasileiro e que, em alguns casos, o gas release não necessariamente resultou imediatamente em preços menores. Ainda assim, a entrada de novos agentes, em conjunto com outras medidas, ampliou o leque de escolha dos consumidores 

“A experiência internacional mostra que o gas release foi muito bem sucedido onde foi implementado, mas não foi suficiente. Foi acompanhado de outras medidas que, em conjunto, conseguiram atingir esse objetivo de um mercado mais competitivo, mais dinâmico, mais líquido, com preços menores para o consumidor final”, resumiu a diretora de Petróleo, Gás e Biocombustíveis da EPE, Heloísa Borges, à agência eixos.

Ela cita, nesse sentido, a importância de se olhar também para a garantia de acesso às infraestruturas essenciais e para a transparência como medidas regulatórias associadas.

As lições da Europa

A EPE se debruçou sobre o histórico de cinco países (Alemanha, Espanha, Hungria, Itália e Reino Unido). As experiências avaliadas sugerem que não há uma forma única – volumes, vigência e a periodicidade das ofertas podem variar, por exemplo. 

A estatal cita a importância de se considerar as particularidades da indústria local na definição das características do programa. 

E, em resumo, apresenta as algumas conclusões:

  • Escopo: É importante identificar em quais elos da cadeia ocorre a prevalência do agente dominante, para direcionar melhor a formatação do gas release;
  • Volume: a quantidade de gás a ser ofertada precisa ser dimensionada adequadamente em relação à demanda e ao tamanho do mercado. Os produtos podem ser ofertados por lotes, cujos volumes devem ser pequenos o suficiente para atender à demanda do menor potencial participante e, assim, ampliar o universo de potenciais compradores;
  • Prazo: a vigência média dos programas estudados é de quatro a seis anos, chegando a até dez anos em alguns casos;
  • Periodicidade: a oferta de produtos no leilão é geralmente anual. O volume ofertado em leilão e não compradopode ser ofertado no próximo leilão de forma cumulativa, ou como um produto de curto prazo, em contratos inferiores a um ano;
  • Precificação: a maioria dos países utiliza como base para o preço inicial no leilão o Custo Médio Ponderado do Gás (WACOG, na sigla em inglês) – a média dos vários custos de compra de molécula pelo agente dominante – acrescido de uma pequena taxa. Outros países consideram um percentual relativo (95% do WACOG);
  • Ponto de entrega: deve ser acessível a todos os participantes; geralmente é a rede de transporte, mas há a possibilidade de oferta num ponto virtual de negociação;
  • Desverticalização: os principais programas implementados evitam a participação de subsidiárias do ofertante no leilão;
  • Supervisão: historicamente, há programas que são propostos e supervisionados pelo regulador do setor de gás, enquanto em outros essas funções cabem ao órgão de defesa da concorrência. É desejável que cada responsabilidade seja atribuída claramente a um único órgão. Nos casos em que o tema é tratado pela defesa da concorrência, compete a um órgão regulador setorial a aprovação do programa.

MME endossa gas release

A discussão sobre o gas release é travada em duas frentes:

  • na regulatória, a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) incluiu o assunto na sua agenda em 2023, mas desde então a Análise de Impacto Regulatório (AIR) não avançou;
  • no Legislativo, o senador Laércio Oliveira (PP/SE) pretende apresentar um novo projeto de lei para criar um programa de gas release, depois da tentativa frustrada de emplacar uma política do tipo no Paten em 2024.

O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, reiterou nesta terça o apoio da pasta à criação de um programa de desconcentração do mercado de gás. 

“Muitas mãos oferecendo a molécula de gás natural vai gerar concorrência e diminuir o preço”, disse.

O MME foi um dos apoiadores das discussões sobre o gas release, nos trabalhos do Congresso em 2024. Logo após perder queda de braço dentro do governo em torno da inclusão do assunto no relatório do Paten, Silveira chegou a pedir que a ANP priorizasse o gas release em sua agenda regulatória.

Durante a apresentação do estudo da EPE, em Brasília, nesta terça, o diretor do Departamento de Gás Natural do MME, Marcello Weydt, disse que o gas release parece se “encaixar como um quebra-cabeça” no atual cenário do mercado brasileiro.

“Estamos abrindo o mercado, estamos vendo uma sinalização de concorrência, vendo sinalização de redução de preço, porém ainda não o suficiente de um mercado com excesso de oferta”, comentou.

Petrobras rebate

A Petrobras, principal agente do mercado de gás e alvo potencial de um programa de desconcentração, faz ressalvas à discussão sobre o gas release no Brasil.

O gerente-executivo de Gás e Energia da companhia, Álvaro Tupiassu, defende que a petroleira estatal já assumiu compromissos de desconcentração do mercado em 2019, quando assinou o termo de cessação de conduta (TCC) com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) – o acordo foi posteriormente flexibilizado.

Segundo a Petrobras, a participação de mercado de terceiros, hoje, já é superior a 30%; e na importação, da ordem de 3 milhões a 5 milhões de m3/dia.

“O gas release no Brasil já ocorreu, que foi o TCC do Cade”, disse.

Tupiassu também alega que a experiência internacional mostra que programas de desconcentração ocorreram, sobretudo, em mercados essencialmente importadores, e não em países com produção relevante e crescente como o Brasil – e que foram pensados, em muitos casos, para reduzir o tamanho da participação do agente dominante no volume importado.

O foco do Brasil, segundo o executivo, deveria estar no aumento da oferta de gás.

Ele reforça o argumento de que “mudar o gás de mão” não reduzirá o preço do gás. E defende que, se mesmo assim o Brasil optar por seguir o caminho do programa de desconcentração, que ele seja concebido com o cuidado para atrair players com “visão de permanência no mercado a longo prazo”, para não comprometer a segurança do abastecimento.

Consumidores apoiam desconcentração

O gas release é uma bandeira levantada por entidades ligadas aos consumidores industriais – associações como a Abpip (produtores independentes) e a Abegás (distribuidoras) também são defensores de uma política de desconcentração.

O coordenador adjunto do Fórum do Gás, Lucien Belmonte, manifestou apoio à iniciativa do MME de sair em defesa do assunto.

“Sempre faltou coragem regulatória no Brasil para tratar do assunto”.

Ele pontua que, embora a Petrobras tenha perdido participação de mercado nos últimos anos, a estatal ainda é formadora de preços no Brasil

A Abrace, que representa os grandes consumidores industriais de energia, defende que o gas release deve ser implementado em paralelo a uma agenda mais ampla pró-abertura do mercado, para que os agentes possam se estabelecer também de forma orgânica.

A associação cita que a concentração de mercado tende a se manter nos próximos anos, na medida em que os novos projetos de produção de gás no país contam com a presença da Petrobras.

O diretor de gás natural da Abrace, Adrianno Lorenzon, ressalva, porém, que um primeiro passo deveria ser um estudo sobre o real status da concentração do setor.

“Para entendermos a dose do remédio de que precisamos, precisamos entender onde estamos”, comenta.

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