As reformas do mercado de gás no Brasil trazem a promessa de mudanças importantes que possibilitarão a formação de preços de mercado mais competitivos para a indústria. Hoje, as transações comerciais para o gás observam os preços internacionais do petróleo e não refletem as condições de oferta-demanda do mercado brasileiro de gás natural. E apesar dos anseios para uma resposta rápida de redução dos preços é preciso ter em mente que formar as bases para uma negociação competitiva demanda mudanças estruturais e isso leva tempo.
Para acelerar este cenário tão desejado pelo mercado, maior competição da oferta a preços menores, será preciso fazer algumas escolhas. O lado positivo é que o Brasil não precisa começar do zero, pode aprender com as experiências internacionais bem sucedidas sobre o que é preciso fazer e o que não é recomendado. As escolhas podem ser mais efetivas, mas não necessariamente mais fáceis.
Há quase uma década o setor de gás natural no Brasil discute maneiras de tornar as condições comerciais e o preço deste energético mais atrativos. Recentemente estas discussões se materializaram em reformas importantes que ainda estão em fase de implementação: redesenho do arcabouço legal, regulações setoriais e a mais concreta até o momento, através do Termo de Compromisso de Cessação de Prática (TCC) firmado entre a Petrobras e o CADE, com o objetivo de corrigir algumas condutas da monopolista e possibilitar a introdução da competição no mercado.
Começamos fazendo as escolhas corretas. O projeto de lei que foi aprovado na Câmara dos Deputados tem como alicerce a promoção da competição, e por isso a redação foi endossada pelos agentes que atuam em praticamente todos os elos da cadeia produtiva e agora precisa passar pelo Senado Federal. E, como os ciclos de investimento da indústria do petróleo e gás natural são longos, com efeitos para os próximos 5 a 7 anos, quanto mais rapidamente a Nova Lei for aprovada, mais cedo teremos segurança jurídica e regulatória necessária aos investimentos que estão por vir. Assim, mapear as perspectivas de mercado é fundamental para decidir quanto produzir.
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Mas não quer dizer que não podemos acelerar os resultados esperados. O referido projeto traz uma possibilidade ímpar, que a experiência internacional nos mostra ser importante para que o mercado se forme de fato. Isso porque nem sempre a regulação setorial, por si só, consegue promover os efeitos desejados para garantir competição na oferta. É preciso conjugá-la com medidas de desconcentração da oferta, conhecidas como Gas Release.
O Reino Unido foi pioneiro na aplicação desta política na Europa. Como forma de desconcentrar o mercado foi imposto à British Gas uma série de medidas, como a limitação de aquisição de novos volumes de outros produtores e também a liberação de parte do seu portifólio de comercialização, o que contribuiu para a redução do market share da empresa e para o desenvolvimento do mercado à vista (spot), que cresceu exponencialmente.
Na Itália esta política possibilitou a outros supridores terem acesso a transações comerciais em diversos hubs internacionais, o que aumentou a liquidez no mercado spot italiano. O aumento da liquidez e das transações inter-mercado modificou a lógica de precificação do gás, antes indexado aos preços do petróleo, para uma competição gás-gás, o que levou à redução do spread, até então observado em relação a outros marcadores europeus.
Esses resultados só foram obtidos porque tais programas de liberação de molécula de gás natural foram aplicados em conjunto com outras medidas estruturais para permitir a contestação do poder de mercado da empresa dominante.
No Brasil, esta política pode ser estritamente necessária para o caso de os remédios aplicados pelo Cade não surtirem os efeitos desejados. O TCC firmado entre o Cade e a Petrobras – para corrigir algumas condutas consideradas nocivas ao desenvolvimento da concorrência no mercado de gás, como já citado, foi muito positivo. Esse TCC, todavia, poderia ter impacto muito maior se tivesse contemplado medidas de gas release. Isto é, a oferta de gás a partir deste princípio conferirá oportunidades a um número maior de agentes ao que seria realizado caso o próprio mercado tivesse que encontrar sua oferta e demanda, numa condição gradual de abertura.
Neste contexto, o próprio Cade poderia abrir um novo inquérito para avaliar a implementação do gas release como forma de reestruturar o setor e acelerar a introdução da concorrência, até que as barreiras de acesso ao mercado estejam plenamente superadas. No entanto, este pode ser um caminho mais longo.
A outra alternativa seria através da aprovação do projeto de lei que tramita no Senado Federal, o qual prevê que as medidas de desconcentração de oferta e de estímulo à concorrência sejam instituídas pela ANP. Dessa forma, a ANP será revestida de competência legal para adotar medidas que possibilitarão a contestação do poder de mercado da firma estabelecida ao permitir que consumidores elegíveis, de forma ampla, possam se beneficiar do programa.
Ambas as alternativas, para chegarem aos resultados esperados, dependem de um regramento legal mais sólido e robusto, portanto, a aprovação do projeto de lei é essencial para a efetiva abertura do mercado de gás assim como também é essencial o aprimoramento das regulações estaduais. Isto é, para além das condições inerentes ao programa – comuns a todos os mercados – no Brasil, já que a distribuição do gás precisa de regulamentação dos Estados, algumas exigências devem ser introduzidas ao modelo do programa para que o benefício não fique restrito a mercados que possuem acesso ao sistema de transporte e à oferta exclusiva das distribuidoras. Ou seja, é preciso melhorar também a regulação do mercado livre para que o maior número de agentes possa ter acesso a oferta proveniente do gas release.
Sendo assim, precisamos avançar com a aprovação da Nova Lei do Gás e aproveitar este momento único de maior convergência para endereçarmos as medidas necessárias tanto na esfera federal quanto na estadual. A aprovação célere do Projeto de Lei nº 4476/2020 formará as bases legais para que possamos ter um mercado de fato e não perdermos investimentos importantes tanto no setor de petróleo e gás como em setores industriais que dependem desse gás para investir e crescer.
Juliana Rodrigues, economista pela UFRJ. É especialista em energia na ABRACE há cinco anos, com experiência em regulação e inteligência de mercado na Vale. O tema do artigo é resultado do trabalho de conclusão de curso no MBA em Economia, Gestão e Regulação pela FGV.