Nos últimos meses o Brasil construiu marcos legais importantes para oferecer segurança jurídica e previsibilidade a investidores na transição energética.
O conjunto de leis que trata do hidrogênio de baixa emissão de carbono, da eólica offshore, do mercado de carbono, do Programa de Aceleração da Transição Energética (Paten), do Programa Mover e do Programa Combustível do Futuro, representam um avanço para a descarbonização de diversos setores da economia.
O momento não poderia ser mais oportuno. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, abandonou o Acordo de Paris e suspendeu estímulos a transição energética. Se o Brasil conseguir oferecer um ambiente saudável para investimentos em energia renovável, poderá capturar recursos que em outras circunstâncias seriam destinados aos EUA.
O primeiro passo para superarmos o wishful thinking é dar vida a este conjunto de leis, o que significa regulamentar esses marcos legais e fortalecer as agências reguladoras responsáveis pela sua implementação.
Isto porque são inúmeras as novas atribuições das agências reguladoras, cabendo a elas regular e fiscalizar atividades conectadas a transição energética que não existiam quando das suas criações.
Somente a lei que dispõe sobre o Programa Combustível do Futuro, por exemplo, estabeleceu amplas atribuições para a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). De regular a (nova) atividade de captura e estocagem de carbono a estabelecer os valores das emissões de gases de efeito estufa do querosene sustentável (SAF), além de fiscalizar toda a cadeia de produção e comercialização de combustíveis.
O problema é que há alguns anos as agências vêm sendo desidratadas por reiteradas reduções de recursos financeiros e de pessoal. O orçamento para as despesas discricionárias da ANP, como a fiscalização, por exemplo, foi reduzido em 78% no período de 2013 a 2023. Além da falta de recursos financeiros, há dez anos não é realizado concurso para a contratação de servidores da ANP.
O déficit de recursos humanos e financeiros já dificulta o cumprimento das suas atuais atribuições. Recente ofício encaminhado pela ANP ao Ministério Público Federal, informa que a capacidade de fiscalização projetada para o ano de 2025 é de apenas 9% das instalações dos agentes de distribuição e revenda de combustíveis, “sem considerar novos cortes orçamentários”.
Uma modalidade de fraude que vem ganhando tração nos últimos meses é um bom paradigma para projetarmos as dificuldades que se avizinham se a ANP não for dotada de meios para executar as suas futuras funções na transição energética. Trata-se da comercialização do diesel sem a adição do percentual obrigatório de biodiesel. Explica-se.
O diesel é o combustível mais usado no transporte de pessoas e cargas no Brasil, gerando emissões de gases de efeito estufa superiores à gasolina e ao etanol. Assim, com o objetivo de reduzir a sua intensidade de carbono, desde 2014 a lei determina que o diesel deve conter um percentual de biodiesel agregado.
Ocorre que, como o biodiesel tem custo maior que o diesel, algumas distribuidoras de combustíveis buscam aumentar as suas margens de lucro ilegalmente, deixando de realizar a obrigatória adição do biodiesel. Tal fato é relatado por circular do Sindicato Nacional do Transportador Revendedor Retalhista. Associações que congregam produtores de biodiesel informam que as vendas vêm caindo apesar do mesmo não acontecer com o diesel, o que evidencia a comercialização de diesel sem o percentual obrigatório de biodiesel.
De um lado, a não observância da mistura correta de biodiesel no diesel gera um impacto direto na margem de lucro percebida por estas distribuidoras e, consequentemente, dá causa a concorrência desleal, lesando os agentes que atuam conforme a lei. Fomenta, em consequência, a comercialização de diesel em desconformidade com as normas vigentes, prejudicando a descarbonização no setor de transporte.
De outro lado, este movimento segue no caminho contrário do compromisso assumido pelo Brasil no Acordo de Paris, cuja Contribuição Determinada Nacionalmente (NDC, em inglês) prevê a expansão da produção de biocombustíveis.
Em sintonia com este compromisso, a lei do Combustível do Futuro determina que, de 2025 a 2030, o percentual de biodiesel agregado ao diesel deverá ser aumentado 1% ao ano, alcançando o percentual de 20%. Assim, se nada for feito, o problema se tornará mais agudo com o passar do tempo.
A solução para esta fraude, assim como para prevenir que algo semelhante ocorra em outros setores fundamentais à transição energética, parece ser óbvia, o que não significa ser simples.
Em meio ao ajuste fiscal que o governo vem conduzindo, é preciso dotar a ANP dos recursos financeiros e humanos que viabilizem a adequada execução das suas atribuições legais. Redesenhar as fontes de receita da ANP para que uma maior parcela não passe pela Conta Única do Tesouro Nacional, impedindo cortes orçamentários, pode ser um caminho.
O fato é que o país não conseguirá atrair investimentos no setor de energia renovável e cumprir com os seus compromissos no Acordo de Paris se não contar com uma ANP que tenha musculatura para garantir o cumprimento das normas vigentes, garantindo segurança jurídica e previsibilidade. Se não houver a certeza de que o mercado caminhará balizado pelos termos da lei, seguramente o investimento em energia renovável será reduzido.
Enfim, a transição energética precisa da ANP forte e capaz de cumprir plenamente as suas crescentes atribuições. Caso contrário a transição energética será mais uma vítima das “leis que não pegam”, fenômeno bem conhecido pelos brasileiros.
Este artigo expressa exclusivamente a posição do autor e não necessariamente da instituição para a qual trabalha ou está vinculado.
Guilherme Vinhas é mestre em direito, advogado especializado em regulação de energia e transição energética, autor do livro Fundamentos da Transição Energética.