Ao mesmo tempo em que a União Europeia (UE) reforça o papel do hidrogênio como um dos seus pilares centrais de desenvolvimento econômico e descarbonização da indústria, a regulamentação rigorosa em torno da certificação do energético tem gerado debates entre governos, associações industriais e especialistas.
Um ponto de atenção é a preferência pelo hidrogênio de eletrólise com renováveis (também chamado verde) e a exclusão de outras rotas como o gás natural com captura de carbono (o hidrogênio de baixo carbono) de programas de incentivo.
Recentemente, pressões para flexibilizar as regras de certificação e incluir o hidrogênio de baixo carbono em subsídios governamentais ganharam força, demonstrando a complexidade em balancear metas ambientais ambiciosas e viabilidade econômica e tecnológica.
Diferente da legislação brasileira, que optou por uma visão agnóstica na concessão de subsídios a produção de hidrogênio, sem levar em conta a rota produtiva, a legislação europeia decidiu pela priorização de incentivos ao hidrogênio verde.
As rotas do hidrogênio
O hidrogênio verde, ou renovável, é produzido por meio da eletrólise da água utilizando eletricidade oriunda de fontes renováveis, como solar e eólica.
Já o hidrogênio de baixo carbono pode ser gerado a partir de fontes fósseis, como o gás natural, combinado com tecnologias de captura e armazenamento de carbono (CCS), por por meio da energia nuclear, ou até mesmo da utilização de energia elétrica diretamente do grid, sem que essa seja renovável.
Enquanto o obtido a partir da eletrólise é considerado o mais sustentável e com menor emissão, o de gás natural é encarado como uma solução-ponte, para reduzir emissões enquanto o hidrogênio renovável ganha escala e competitividade econômica.
Atualmente, a UE adota critérios rigorosos para o hidrogênio renovável, definido dentro do conceito de Combustíveis Renováveis de Origem Não Biológica (RFNBOs, na sigla em inglês).
Essas regras, apesar de alinhadas com as metas climáticas do bloco, são criticadas por serem excessivamente restritivas, impedindo justamente o alcance da competitividade e do próprio desenvolvimento do mercado de hidrogênio, que ainda permanece travado pela incerteza de demanda.
Por uma abordagem menos dura
Associações e governos dos estados-membros da UE têm pressionado a Comissão Europeia a revisar as regras de certificação.
Um exemplo recente é carta conjunta Hydrogen Europe — maior representante do setor de hidrogênio da UE — e outras 16 associações europeias — que incluem entidades da indústria química, siderurgia, fertilizantes, óleo e gás, entre outras — que pedem uma abordagem mais pragmática e que seja tecnologicamente neutra para a produção de hidrogênio
As associações entendem que é necessária uma análise mais detalhada sobre os impactos dos critérios de RFNBOs nos custos de produção e, logo, na sua aplicabilidade econômica.
Outro ponto considerado essencial é a inclusão do hidrogênio de baixo carbono dentro de programas de incentivos do bloco, hoje restritos apenas ao hidrogênio renovável.
A carta ainda sugere a criação de mercados para produtos RFNBOs e combustíveis de baixo carbono, e incentivos voltados para o lado da demanda, em especial as indústrias.
A exemplo do que já acontece na França, onde projetos de aço verde, como da GravitHY, recebem subsídios do governo para produção de ferro de redução direta (DRI), a partir de hidrogênio rosa (feito com eletrólise utilizando energia nuclear).
Uma perna internacional do Banco de Hidrogênio da UE também é defendida pelos agentes, visando a criação de um mercado global para hidrogênio, com países fora do bloco.
A Alemanha do rigor ao pragmatismo
O governo alemão, até então o ator com a estratégia de hidrogênio mais restrita, totalmente voltada para a eletrólise, vem mudando o tom no debate, argumentando que as definições atuais de hidrogênio verde são demasiado rígidas e impedem a competitividade de projetos emergentes.
O Ministro da Economia da Alemanha, Robert Habeck, chegou a enviar um pedido à Comissão Europeia solicitando o adiamento da regra de adicionalidade até de 2028 para 2035. O critério exige que os projetos de hidrogênio usem apenas energia renovável nova.
Outras demandas incluem a ampliação do prazo para cumprimento da regra de correlação temporal, de 2030 para 2031. Neste requisito, a produção de hidrogênio deve corresponder à geração de energia renovável por hora — uma maneira de impedir que se compense a energia limpa utilizada do grid com energia de fontes fósseis.
Os dois fatores, na avaliação do governo, tornam o hidrogênio verde neste momento ainda mais caro do que já é. Em outra frente, a Alemanha também vem defendendo a adoção do hidrogênio azul (produzido a partir de gás natural com CCS) como uma solução transitória, capaz de impulsionar a indústria.
Parte do responsável por essa mudança de rumo na Alemanha é o setor siderúrgico do país que vem apresentando quedas na produção de demanda nos últimos anos, e que vê sua competitividade ainda mais ameaçada com as obrigações de descarbonização das suas atividades.
E é aí que Scholz prometeu defender o “pragmatismo” para produção de DRI usando hidrogênio de baixo carbono, o que curiosamente pode beneficiar a energia nuclear, indo no caminho contrário da política energética alemã adotada nos últimos anos
No meio do caminho, o debate nuclear
Aliás, a inclusão da fonte nuclear como apta para produção de hidrogênio verde foi pauta de um outro debate, entre a Alemanha e a França.
A França, que tem planos de ampliar exponencialmente sua capacidade de geração nuclear, chegou a criar resistências, na linguagem diplomática, para a construção do gasoduto dedicado a hidrogênio, que ligará a Espanha à Alemanha, passando por território francês.
Isso porque não faria sentido para o país apoiar a construção de tal infraestrutura sem que seu hidrogênio rosa produzido a partir de energia nuclear pudesse abastecer o gasoduto.
A resistência, a princípio, está apaziguada, diante das discussões sobre o hidrogênio de baixo carbono pela Comissão Europeia e dos acenos, incluindo da Alemanha, para aceitação da rota, o que deve viabilizar a construção do H2Med.
Hidrogênio como ferramenta de equilíbrio e segurança da UE
A própria inclusão de outras rotas de produção de hidrogênio de menor emissão é capaz de nivelar o jogo entre os estados-membros da UE, que possuem diferentes recursos energéticos e infraestruturas.
Por exemplo, países como Espanha, que têm maior capacidade de energia renovável, podem se beneficiar do hidrogênio verde, enquanto países como Polônia e Eslováquia, com maior geração nuclear, poderiam produzir hidrogênio de baixo carbono para cumprir suas metas climáticas.
Além disso, a inclusão do hidrogênio de baixo carbono pode desempenhar um papel complementar, especialmente em setores de difícil descarbonização, como a siderurgia e a química, em termos de garantia de volume e até mesmo de diversificação de supridores, evitando a repetição do erro da dependência do gás natural russo.
O desafio maior será obviamente calibrar incentivos, assim como por aqui, para que investimentos para projetos com menor emissão de carbono não sejam desviados, o que retardaria ainda mais a transição para longe dos fósseis.